A surpreendente eleição de Carlos Moedas, para a presidência da Câmara Municipal de Lisboa (CML), incomodou muita gente. Pode-se compreender que a pequena margem que decidiu esta vitória seja muito frustrante para quem, fiando-se das sondagens, pensava garantida a reeleição. Mas o modo como a capa da revista Sábado se referiu ao novo autarca de Lisboa é um óptimo exemplo de péssimo jornalismo, tão mau que, de imediato, me levou a desistir de ler a reportagem de Paulo Barriga sobre o novo presidente da CML.
Nos dois títulos em que é referido o presidente eleito da CML – “A fabulosa aventura de Moedinhas” e, contraditoriamente, “A nada surpreendente aventura de Moedinhas na cidade de Lisboa” – não só se repete a palavra ‘aventura’ como se escreve o seu apelido no diminutivo. Ora, deturpar reiteradamente o nome de alguém é, para além de sinal de pouca originalidade, uma falta de respeito por essa pessoa. O segundo mandamento do decálogo proíbe usar o nome de Deus em vão, porque o nome representa quem é por ele designado. A troca de Moedas, por Moedinhas, não é uma questão de trocos: deste modo, pretende-se amesquinhar o novo autarca de Lisboa, a quem todos reconhecem um excelente currículo profissional e o imenso mérito de uma eleição surpreendente.
Não é fácil traçar a fronteira entre a vida privada das personalidades públicas e o indeclinável direito à informação. Mas uma coisa é certa: os subtítulos, na capa da Sábado, porque deontologicamente reprováveis, são muito infelizes.
Nenhum lisboeta precisa de saber que o pai do eleito presidente da CML sofreu um problema de alcoolismo, que foi decerto muito doloroso para o próprio e para a sua família. É verdade que, nas eleições presidenciais norte-americanas, qualquer episódio biográfico de um candidato é considerado de interesse mediático, mesmo que seja uma asneira de um jovem de 16 anos que, 50 anos depois, concorre à Casa Branca. Mas, felizmente, esse não é o estilo das nossas campanhas eleitorais, nem essa é uma boa prática jornalística. Há que valorizar a informação pertinente e descartar a vil coscuvilhice.
A forma sensacionalista como se dá conta do “drama da irmã com cancro” também não é respeitadora da privacidade da doente, nem é do legítimo interesse dos alfacinhas. Só se devem referir as informações que contribuem para uma decisão ponderada dos eleitores: é razoável, certamente, mencionar o currículo académico e profissional do candidato, bem como a sua trajectória política e opções ideológicas, mas a história clínica da irmã não é do interesse dos munícipes e é uma descarada falta de respeito pela privacidade de uma doente oncológica que, também por este motivo, merecia mais respeito.
Por último, a alusão à “crise conjugal quando estava no Governo de Passos”, é mais uma indevida investida na privacidade de Moedas, que também atinge a sua mulher e outros familiares, sem que haja uma razão que justifique o uso e abuso desta informação. Se eu estivesse na ingrata posição de cônjuge de uma personalidade pública, detestaria que a minha intimidade fosse devassada por uma revista sensacionalista. Qualquer que tenha sido o desfecho dessa situação – como disse, por uma questão de decência ética, do artigo só li os títulos – esta indesejável publicidade a ninguém serve e, decerto, muito prejudica os próprios cônjuges, bem como os seus familiares mais próximos.
Com certeza que à comunicação social compete escrutinar a realidade política, nomeadamente através do chamado jornalismo de investigação. Mesmo quando se trata de casos sob a alçada judicial, é razoável que os media informem sobre questões que são de indubitável interesse público. Os cidadãos têm o direito de saber o que se passou com as armas que foram roubadas de um paiol do exército, como também é legítimo o seu interesse em relação aos feitos de um ex-primeiro-ministro que, não em vão, passou quase um ano detido, por alegados crimes que cometeu e que ainda não foram julgados.
Os media não podem substituir o poder judicial, nem se podem pronunciar sobre a inocência, ou culpa, das personalidades públicas que estão a ser alvo de investigações policiais, ou judiciais. Nestes temas, a comunicação social deve manifestar uma escrupulosa isenção em relação às pessoas e questões que aborda. Ao jornalista incumbe informar, mas não julgar, que é competência exclusiva dos tribunais. Também não deve opinar sobre o que é do foro dos juristas e especialistas das matérias em causa.
Do mesmo modo como se impõe respeitar a presunção de inocência, enquanto não houver uma sentença condenatória definitiva, deve-se também observar uma respeitosa reserva sobre questões pessoais e familiares mais íntimas. É o caso das doenças dos familiares próximos, ou as vicissitudes da vida conjugal das personalidades públicas. Certamente, os próprios devem ser os primeiros a não fazer confidências sobre o que é a sua vida privada, mas os meios de comunicação social devem ter o pudor de não expor o que, talvez, sacie a mórbida curiosidade de alguns leitores, mas não dignifica a actividade política, que deve assentar no respeito por todas as pessoas e pela sua privacidade, segundo os artigos 26º, nº 1, da Constituição, e 80º, nº 1, do Código Civil.
É pena que a Sábado tenha cedido à tentação fácil do sensacionalismo barato. Sabendo-se dos generosos subsídios com que o Governo ‘aliciou’ não poucos meios de comunicação social, talvez não seja inocente a forma como esta revista se referiu ao novo autarca de Lisboa. Também um jornal de referência, igualmente subsidiado, escreveu, como legenda a uma fotografia de meia página do eleito presidente da CML: “Carlos Moedas roubou [sic] a Câmara de Lisboa a Fernando Medina” (Público, 5-10-21, p. 10) – nem conquistou, nem ganhou, ou tirou, mas … roubou! Ora isto é uma calúnia, um exemplo de discurso do ódio, uma desonesta ofensa pessoal!
Qualquer cidadão tem todo o direito a ficar desiludido com o resultado das autárquicas em Lisboa, mas, se for democrata, deve respeitar a escolha dos alfacinhas. Ao jornalista pede-se isenção e seriedade na informação, até porque, decerto, os leitores desta revistinha (diminutivo carinhoso) estão mais interessados no programa do novo autarca de Lisboa do que nas vicissitudes da sua vida matrimonial, ou na história clínica dos seus familiares, não obstante o muito respeito que, certamente, lhes merecem as dores de Barriga.