Em 2019, quando se disputavam as primárias para as eleições presidenciais norte americanas, o Partido Democrata tinha um objetivo central: derrotar Donald Trump. Não se tratava apenas do comportamento errático do presidente. Tratava-se também daquilo que a ciência política chama “comportamento tribalista”, em que um grupo, neste caso político-partidário, está mais interessado na derrota do outro do que na sua própria vitória.
Nestas circunstâncias, a esquerda norte-americana deparou-se com um dilema: eleger um candidato moderado que desse mais garantias de vitória eleitoral nas presidenciais ou um candidato outsider que pudesse causar anticorpos no eleitorado (Bernie Sanders seria a escolha mais óbvia, mas havia mais possibilidades). A escolha acabou por recair em Joe Biden. Se Hillary Clinton tinha provado, quatro anos antes, que havia questões com candidatos do sistema, os democratas estavam agora mais atentos à disrupção cibernética russa, e Biden reunia muito mais simpatias que a antecessora. Parecia disposto a unir o partido, mantendo o seu programa e fazendo cedências aos progressistas – como se viu mais tarde, na escolha de Kamala Harris para vice-presidente.
Mas a verdade é que Biden nem chegou a estar em “estado da graça”. O seu discurso de aceitação estava já manchado pelos acontecimentos de 6 de janeiro, que demonstravam que não havia grande espaço para reconciliações. E o cenário só se foi degradando nos últimos dois anos: autores que escreviam sobre polarização referem-se agora ao fenómeno americano como “extremismo político-partidário” e usam termos como “hostilidade violenta” para classificar as relações políticas e sociais nos Estados Unidos.
Com uma inflação acima dos nove por cento e um contexto internacional onde os Estados Unidos estão profundamente comprometidos com uma guerra fora de área, não será muito difícil perceber as razões imediatas pelas quais o presidente está com a pior taxa de popularidade de sempre: 33 por cento. Mas a questão central não é essa: segundo o New York Times, 64 por cento dos eleitores democratas preferiam outro candidato democrata para as eleições presidenciais de 2024. Uma das razões, segundo o estudo de opinião, é que Biden “não é suficientemente progressista”. Os eleitores democratas chegaram ao ponto de, após menos de dois anos de presidência preferirem uma disputa em primárias, do que reencaminhar o incumbente, que tradicionalmente tem maiores hipóteses de ganhar as eleições.
Pior, são as próprias elites do partido que não querem que Biden se recandidate. Alegam a idade avançada, a economia, a perda de poder de compra dos americanos. Mas também alegam que o presidente não fez o suficiente pelas alterações climáticas ou para reverter a decisão do Supremo Tribunal relativamente ao aborto.
Na verdade, o que se passa é mais complexo. O Partido Democrata está há duas décadas partido em dois: de um lado os moderados, a que se costumava chamar liberais-conservadores. Do outro os progressistas, que se identificam menos com o liberalismo, e mais com agendas identitárias, que cabem e se alargam numa sociedade dividida. Mas que também está imbuída de um “pacifismo” isolacionista que pode vir a impedir os Estados Unidos de desempenharam o seu papel de grande potência, num ambiente internacional em que este é preciso mais do que nunca.
Os progressistas têm, efetivamente, uma agenda autoritária. Querem desfazer as desigualdades sociais – o maior flagelo norte-americano que dá origem a tantos outros – através de uma cartilha que obrigaria a uma mudança social tão grande, que se fosse implementada a America tornar-se-ia irreconhecível e, seguramente, menos liberal, como já se deu conta aqui.
Mas este ano vem com duas novidades que transformam este problema. Primeiro, a invasão da Ucrânia e a necessidade de sobrevivência do mundo liberal não foi suficiente nem para unir democratas, nem para unir americanos. Segundo, pela primeira vez, a ala progressista parece estar a ter predominância sobre a ala moderada-liberal. Pode-se alegar a idade de Biden, a situação económica, a inflação. Mas a razão de fundo é que o radicais de esquerda americanos tornaram-se mais fortes, e sentem que é o momento de tomarem o partido. E isto muda tudo.
Biden tem errado, como qualquer presidente de uma grande potência. Mas a realidade é que falhou quando não percebeu uma coisa: que não vale a pena pensar que os Estados Unidos vão voltar ao que eram. A América tem de se reinventar na sua profunda polarização. Ainda ninguém descobriu a fórmula, mas o que é certo, é que o antigo nacionalismo cívico já não tem o apelo do passado. A América como era já não voltará a ser. E os progressistas perceberam-no muito mais rapidamente do que os moderados.