Joe Biden tomou posse há um ano. Tendo a velocidade a que o mundo tem evoluído, parece uma eternidade. Este artigo vai centrar-se nos dois pontos que me parece que definiram estes primeiros 365 dias: a profunda disparidade entre as agendas interna e externa e as questões relacionadas com o uso da força. Estes dois aspetos – bem como a retirada do Afeganistão, – tornaram a América, neste ano que passou, mais vulnerável aos olhos do mundo.

Ainda antes de ganhar as eleições, Joe Biden fez uma proposta muito ousada, mas certeira: reformar a ordem internacional e dar-lhe o cunho americano que tinha perdido com Trump. A proposta foi uma ordem liberal separada, mais ou menos informal, composta pelas democracias do mundo, lideradas pelos Estados Unidos, e em oposição à China. Até agora a adesão tem sido mista. Por um lado, as democracias do Indo-Pacífico têm-se alinhado sem reservas. A proximidade de Pequim tem sido um incentivo poderoso. O mesmo se passa com o Reino Unido, que fora da UE e desejoso de reconquistar uma posição internacional, vê nos EUA a sua porta de entrada para o mundo. Por outro, as democracias europeias, em crise existencial, têm tido dificuldade em aceder ao repto. Nem a ameaça russa das últimas semanas parece ter tido um efeito unificador. Os estados europeus parecem precisar de mais tempo, quando tempo é uma coisa de que não dispomos em contexto de transição de poder e com 100.000 soldados russos em prontidão na nossa vizinhança.

Mas o problema central da ordem Biden não é esse. É o estado da democracia norte-americana. Como já foi dito diversas vezes, a polarização tribal que caracteriza os Estados Unidos não diminuiu. Pelo contrário, crispou-se. Vou apenas citar três indicadores. Primeiro, o bloqueio no Congresso por parte dos republicanos – e diga-se, uns quantos democratas, – continua a paralisar a governação. Neste momento, o Senado atrasa a aprovação do Freedom Vote Act, uma bandeira de Biden contra a supressão do voto, e o Congresso quer rever o Bild Back Better Act, uma lei bipartidária que visa a reconstrução da bastante degradada infraestrutura norte-americana.

Segundo, a propósito do aniversário do assalto ao Capitólio, o tema da violência política entrou no mainstream americano. Diversas sondagens concluíram que um em cada três americanos considera que a violência contra o governo pode ser justificada. Por outras palavras, além das divergências que congelam a tomada de decisão nas instituições, a população americana, cansada de instituições em que não acreditam, passou a achar que podia fazer política pelas próprias mãos. Não fiz nenhum estudo aturado, mas não me parece que seja um indicador vulgar numa democracia madura.

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Finalmente, é significativa a mudança no discurso do presidente. No início deste ano, Biden anunciou que tinha “perdido a paciência”. Passou a usar uma retórica altamente polarizadora, na qual, como os seus adversários mais radicais, diaboliza os republicanos do Congresso e da população, únicos responsáveis pelo desastre americano. Percebe-se a frustração de ver a América recuar, em termos democráticos. Percebe-se a frustração de ver o seu “estado de graça” decair para o presidente menos popular ao fim do primeiro ano de mandato, apenas ultrapassado por Donald Trump. Percebe-se a tentação de ceder à ala radical do seu próprio partido, cada vez maior em número de representantes e eleitores. Mas se a ideia era unir os Americanos e recuperar o centro moderado, distinguir entre “bons” e “maus”, apelando aos “maus” que regressem ao lado do “bem”, parece-me tudo menos uma boa estratégia.

Assim, é notória a diferença entre uma enorme ambição democrática externa e uma enorme dificuldade em corrigir os problemas democráticos internos.

Os inimigos autocráticos dos Estados Unidos da América percecionam e exploram esta contradição. Não é por acaso que a crise da Ucrânia se adensou exatamente neste momento. A Rússia sabe que os EUA têm problemas internos profundos que os inibem de, na prática, ter uma agenda internacional mais robusta. Vladimir Putin percebe que Washington não tem condições política internas para usar a força para defender a Ucrânia. E ainda o Kremlin queira, acima de tudo, negociar a sua esfera de influência – e que prefira fazê-lo sem recorrer à força – pôs em evidência a impotência norte-americana para impor a sua vontade, como faz uma grande potência no sistema internacional. A China, a seu tempo, também irá explorar este filão, ainda que no Indo-Pacífico as coisas possam ser diferentes.

Um ano depois de chegar à Casa Branca, Biden somou alguns sucessos, sendo o mais importante a consolidação do quadro de segurança na Ásia. Em continuidade com a política do seu antecessor, a administração conseguiu criar uma rede estável de parceiros para fazer frente à China. Pequim percebeu, protestou, e agora espera pacientemente a sua oportunidade de contra-atacar. Mas Biden também tem, no decorrer  deste ano, um grande fracasso: o paradoxo entre querer criar uma ordem liberal separada e a dificuldade de estabilizar a democracia na própria América.

Parte da responsabilidade não é sua. Os problemas que hoje parecem quase intransponíveis tiveram início nos anos 1990, com responsabilidades partilhadas por ambos os partidos políticos e outros quantos membros da sociedade civil. Mas um presidente que quer reestabelecer o centro moderado e ser o líder do mundo livre não pode perder a paciência para o eleitorado nem a vontade política de impor as regras do seu corolário no sistema internacional. Um ano é uma marca no calendário de um caminho onde faltam, pelo menos, três. Mas uma coisa é certa: não é com cansaço e falta de força política que muda ou lidera seja o que for.

No fim de um de mandato de Biden é legitimo perguntar se ainda há “mundo livre”. Da maneira que o concebíamos, poderá deixar de haver, no médio prazo. Resta a esperança de que a América se reinvente como fez no passado. Mas a política não vive de esperança. Vive de decisões.