Completamente vidrados (para usar uma palavra bem brasileira) em Bolsonaro, muitos comentadores não notam o que de mais interessante está a acontecer no Brasil. Mas antes de tratar desse tema, vamos brevemente a Bolsonaro e a Lula. Para mim, é incompreensível que o Brasil tenha que escolher entre Bolsonaro e Lula. Mas não quero julgar os brasileiros. Estive uma semana no Brasil em trabalho, e falei com muitos brasileiros, de esquerda e de direita. Há uma minoria que também não entende a escolha entre Bolsonaro e Lula. Mas a maioria ama ou odeia Bolsonaro e Lula. Não é fácil entender devidamente as razões dessa polarização. Mas, de certo modo, Lula e Bolsonaro são as duas faces da mesma (má) moeda. Bolsonaro só foi eleito em 2018 por causa da corrupção e do abuso de poder do PT. E, apesar de erros desastrosos durante o seu mandato, só está na segunda volta porque o outro candidato é Lula. De um modo semelhante, apesar do passado do PT e do desprezo que muito brasileiros sentem pelo partido, Lula só pode ganhar porque o seu adversário é Bolsonaro. Mas Lula é maior do que o PT. E Bolsonaro é mais pequeno do que o centro, o centro direita e a direita. Por isso, Lula é o favorito. Ganhe Lula ou Bolsonaro, esta eleição presidencial será a última de um ciclo politico, que começou com a queda da ditadura militar, mas que está a chegar ao fim. É essa transformação que interessa analisar. Convém, aliás, recordar que já houve umas eleições: as eleições para o Congresso. O resultado dessas eleições diz-nos muita coisa.

Antes de mais, o sistema partidário brasileiro está a passar por uma profunda mudança. É verdade que sempre houve um número exagerado de partidos, que se juntam, acabam e renascem frequentemente. Mas o PT, o PSDB e o PMDB dominaram a política brasileira desde o regresso da democracia. Entre 1994 e 2015, os presidentes vieram do PT e do PSDB: Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. O PMDB fez sempre parte das coligações de governo, com o PSDB e com o PT, durante todo esse tempo, e continuou no governo até 2018, com Temer na Presidência. Entre 1994 e 2018, todas as eleições presidenciais foram decididas entre candidatos do PSDB e do PT (em 1994 e em 1998, FHC ganhou na primeira volta a Lula, de 2002 a 2014, os candidatos do PT, Lula e Dilma, ganharam na segunda volta a candidatos do PSDB – Serra, duas vezes, Alckmin e Aécio). Em 2018, já não houve candidato do PSDB na segunda volta. Agora, nem sequer houve candidato presidencial do PSDB. Nas eleições para o Congresso, o PSDB sofreu o pior resultado da sua história desde 1994. Mais grave, pela primeira vez desde 1994, o Governador do Estado de São Paulo não será do PSDB. O velho partido fundado por FHC pode estar perto do fim.

O PMDB, agora MDB de novo, vai resistindo. Mas deixou de ser um grande partido, indispensável a uma maioria governamental. Não passa agora de um partido médio. Nas eleições para o Congresso, do passado dia 2, ficou no quinto lugar ao lado do PSDB. Dos tradicionais três grandes partidos, o PT é o que melhor resiste. Ficou em segundo lugar nas eleições para o Congresso, domina na esquerda, mas foi incapaz de se renovar. A incapacidade de arranjar uma alternativa a Lula mostra a sua falta de renovação. E a sua segunda figura, Haddad, é um verdadeiro derrotado. Exibe no seu currículo derrotas nas eleições para a Perfeitura de São Paulo, para o Estado de São Paulo e para a Presidência da República. O mais provável será perder de novo na segunda volta da eleição para Governador do Estado de São Paulo. Provavelmente, o candidato presidencial da esquerda brasileira no pós-Lula não será do PT.

A afirmação da direita brasileira constitui a segunda grande mudança da política brasileira. As duas Casas do Congresso têm, a partir de 2 de Outubro, uma maioria de direita. Ainda nos lembramos dos tempos em que se dizia que no Brasil não havia direita, mas apenas esquerda (PT) e centro (PSDB e PMDB). Esse tempo acabou. No Brasil há agora uma direita política com força, o que em grande medida explica a implosão do PSDB. Se as coisas correrem bem, o período dominado por Bolsonaro corresponderá ao radicalismo de quem saiu do armário com fúria. E o pós-Bolsonaro terá uma direita desenvergonhada, afirmativa, conservadora, mas moderada.  Neste sentido, valerá a pena acompanhar o percurso político do Governador de Minas Gerais, Romeu Zema (do Novo), reeleito na primeira volta, e do provável futuro Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Finalmente, há uma transição fundamental no sistema político brasileiro. O presidencialismo deu o lugar a um regime mais parlamentarista. Essa transição começou com a impugnação de Dilma Rousseff, em 2015. Desde aí, os Congressistas não permitiram que lhe retirassem o poder conquistado. Pelo contrário, o Congresso até reforçou o seu poder durante a presidência de Bolsonaro, o que aqueles que apenas viam o “fascismo” à frente nunca entenderam.

Seja qual for o resultado da eleição presidencial, o predomínio do Congresso irá manter-se. As maiorias políticas formam-se agora no Congresso, e são lideradas pelos Presidentes da Câmara e do Senado. Deixaram de ser formadas e lideradas pelo Presidente Federal, como Bolsonaro bem sabe. Se Lula for eleito, o primeiro ano será dominado pela disputa entre o Presidente e o Congresso pelo domínio da política brasileira. Haverá concessões de ambos os lados, mas Lula nunca mais será o Presidente poderoso como foi entre 2002 e 2010. Será a consequência de um Presidente que divide mais do que une. Se Bolsonaro ganhar, o Congresso também não deixará o Presidente retirar-lhe poder.

Nos últimos anos, o regime politico brasileiro tornou-se mais parlamentar e menos presidencialista. Nos finais dos anos de 1980 e no início dos anos de 1990, as forças mais democráticas, como o PSDB, queriam um regime parlamentar, para fazer uma ruptura absoluta com o presidencialismo da ditadura militar (ao contrário do PT que, educado em Cuba, também desejava um presidencialismo centralizador). Não deixa de ser duplamente irónico que o parlamentarismo está a triunfar quando o PSDB está a morrer, e que isso aconteceu durante a presidência de um capitão que gosta de elogiar a ditadura militar. No Brasil, tal como em qualquer outro país, a realidade tem mais força do que as palavras.

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