A Polónia tem um vasto e honroso currículo na defesa da Europa e dos clássicos valores identitários do Ocidente. Para não ir mais atrás, recordo apenas: a vitória decisiva no cerco de Viena, no Verão de 1683, da Santa Liga do Sacro Império Romano-Germânico, integrada pelos polacos, comandados pelo rei João Sobieski, que levou então à derrota do Império Otomano e à interrupção da expansão do Islão pela Europa; a resistência contra o ocupante alemão de 1939 a 1944, que contribuiu para, definitivamente, pôr fim à barbárie Nazi no seu País; e a longa luta de sobrevivência ao regime comunista de 1944 a 1989, atestam-no, mais uma vez, sem margem para qualquer dúvida. Não é pouca coisa! Após este heroico percurso, a sua merecida entrada na União Europeia (UE) ocorreu a 1 de Maio de 2004.

Para quem viveu apaixonadamente o notável pontificado de João Paulo II entre 1978 e 2005 e, por via disso, foi levado a tomar conhecimento da sua oposição ao comunismo desde muito cedo, em 1945, ainda seminarista – oposição essa que só por milagre não lhe valeu a morte prematura logo a 13 de maio de 1981 –, a nação polaca tornou-se uma referência europeia e até mundial da defesa do direito natural à verdade com que os cristãos acreditam que todos os homens e mulheres são criados.

Para se perceber mais detalhadamente o que foi a oposição destemida de Karol Wojtyla ao comunismo, e a perseguição assanhada que os mais altos responsáveis comunistas lhe moveram enquanto padre, bispo e arcebispo, torna-se indispensável a leitura da primeira parte do livro de George Weigel, The End and the Beginning, com o subtítulo Pope John Paul II – The Victory of Freedom, the Last Years, the Legacy (590 páginas, Doubleday, 2010).

A primeira parte (pp. 23-187), sob o título Nemesis, narra com bastante detalhe o que foi aquele confronto e assenta em muita informação procedente de diversos serviços de intelligence comunistas que, entretanto, veio a tornar-se disponível a investigadores. Com efeito, escreve Weigel no Prólogo: «Muitos registos da guerra comunista contra Karol Wojtyła e contra João Paulo II foram destruídos durante e imediatamente depois do colapso comunista em 1989, mas um vasto arquivo, que apenas começou a ser explorado na primeira metade da década após a morte de João Paulo, permaneceu. Uma cuidadosa análise, ainda que de uma modesta seleção de materiais destas fontes primárias […], produz um retrato muito mais rico e mais detalhado de como e porque razão o comunismo entrou em guerra contra Karol Wojtyła, quando ele foi arcebispo de Cracóvia e depois de se tornar Bispo de Roma. Estes materiais também ilustram como os serviços secretos de informações penetraram o Vaticano e procuraram usar contactos diplomáticos com a Santa Sé como meios de avançar os seus interesses […] e fortalecer os seus esforços para penetrarem os mais altos níveis da liderança Católica, particularmente no próprio Vaticano. Os registos do KGB, da SB polaca e da alemã de leste Stasi também oferecem uma janela para o mind-set da diplomacia vaticana, mesmo quando confirmam a intuição de que João Paulo II e os seus diplomatas frequentemente tinham visões dramaticamente diferentes a respeito da estratégia e tática apropriadas para o encontro com o desafio comunista» (p. 4; tradução minha).

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À medida que se avança na leitura desta primeira parte do livro, o nível de penetração destas toupeiras e informadores revelado é particularmente impressionante e inquietante: de padres a monsenhores, bispos, arcebispos e até cardeais, alguns estão realmente identificados, outros aparecem com os seus nomes de código.

Mas a Polónia é uma referência não só por ter sido o chão em que se apoiou a poderosa catapulta espiritual que derrotou o campo soviético, como também por ter voltado uma vez mais a reerguer um Estado em tudo digno do seu passado heroico na defesa da Cristandade, dos valores cristãos. Não é assim por acaso que o Estado-nação polaco, uma vez libertado do jugo totalitário, não tenha descansado enquanto não pôs cobro a 35 anos de despenalização do homicídio de nascituros, eliminando logo em 1991 o aborto por razões sociais.

Homicídio, assim mesmo classificou e se referiu ao aborto, mais uma vez, o próprio Papa Francisco, dia 14 deste mês, ao dirigir-se aos farmacêuticos hospitalares italianos, no Vaticano: «Sull’aborto ho avuto occasione di tornare anche recentemente. Sapete che su questo sono molto chiaro: si tratta di un omicidio e non è lecito diventarne complici» (sic) / «Ainda recentemente tive ocasião de voltar ao tema do aborto. Sabeis que sobre isto sou muito claro: trata-se de um homicídio e não é lícito tornar-se cúmplice dele».

Efectivamente, um mês antes, na sua entrevista a bordo do avião, de regresso a Roma, dia 15 de Setembro, Francisco não podia ser mais claro:

«O aborto é mais do que um problema, o aborto é um homicídio. O aborto… sem meias palavras: quem faz um aborto, mata. Pegai em qualquer livro sobre embriologia, daqueles que estudam os alunos nas Faculdades de Medicina e vede que, na terceira semana da gestação – na terceira semana, e muitas vezes antes que a mãe se dê conta –, o feto já tem todos os órgãos; todos, mesmo o DNA. E não seria uma pessoa? É uma vida humana… ponto final! E esta vida humana deve ser respeitada. Este princípio é tão claro… A quem não consegue entendê-lo, eu faria duas perguntas: é justo matar uma vida humana para resolver um problema? Cientificamente, é uma vida humana. Segunda pergunta: é justo contratar um sicário para resolver um problema? Isto disse-o publicamente a Jordi Evole quando dei [a entrevista]. Disse-o há poucos dias na Cope [rádio católica espanhola], quis repeti-lo agora… e ponto final! Não nos enredemos em lucubrações estranhas. Cientificamente, é uma vida humana. Os livros no-lo ensinam. E eu pergunto: é justo eliminá-la, para resolver um problema? Por isso a Igreja é tão severa neste tema, porque, se aceitasse isto, era como se aceitasse o homicídio diário».

Do mesmo modo também não é por acaso que, vinte anos depois de ter sido erradicado o aborto por razões sociais, o Tribunal Constitucional da Polónia, em outubro de 2020, tenha julgado ilegal o aborto por razões eugénicas. Tal como não é surpreendente que a re-criminalização do aborto, desde 1991, não abranja as mães, mas apenas aqueles que as tenham persuadido a sujeitar-se-lhe ou os que o tenham ordenado ou realizado.

Foi, pois, com indignação que os defensores da proteção integral da vida humana, desde a concepção até à morte natural, assistiram aos ataques do Parlamento Europeu ao referido acórdão do Tribunal Constitucional da Polónia, por aqueles considerado exemplar, logo em Novembro de 2020 e de novo em Fevereiro passado. E é com alarme que têm acompanhado as concomitantes acusações feitas por todas as instituições europeias, de violação do Tratado de Lisboa por alegada governamentalização da magistratura judicial da Polónia.

Acusações essas que atingiram o paroxismo após o respetivo Tribunal Constitucional ter recentemente reafirmado a primazia do direito polaco nas áreas de soberania que não foram explicitamente transferidas para a União Europeia, e que por isso não deviam caber na jurisdição do Tribunal de Justiça.

Com efeito, seria pouco menos que trágico, para os defensores do direito à vida dos nascituros, se vingasse a interpretação extensiva de certos artigos do Tratado de Lisboa com base na qual o Tribunal Europeu de Justiça atribuiu à UE competências que não foram claramente previstas nos tratados. Como, por exemplo, a competência para avaliar anualmente a conformidade da separação de poderes e da independência dos juízes nos Estados-Membros (EM) com os modelos que a Comissão Europeia considera mais adequados. Ou a conformidade do regime legal de proteção dos nascituros na Polónia com a proteção dos chamados direitos de saúde reprodutiva das mulheres e das raparigas, em vigor na esmagadora maioria dos demais EM.

Foi assim com grande alívio que foi ouvido o discurso que o Primeiro Ministro da Polónia fez questão de ir pessoalmente fazer na passada terça-feira aos deputados europeus reunidos em Estrasburgo. O próprio Mateusz Morawiecki, logo ao iniciar a sua declaração, resume os pontos que desenvolveu:

«I am standing here before you today in the Parliament, to set out our position on a number of issues which I believe are fundamental for the future of the European Union. Not just for the future of Poland, but for the future of the Union as a whole. Firstly, I will talk about the crises that Europe is facing today – and which we should address. Secondly, I will talk about standards and rules – which should always be equal for everyone – and the fact that too often they are not. Thirdly, I will present a view on the principles that no public authority should take action for which it has no legal basis. The fourth point of my speech will concern the judgment of the Polish Constitutional Tribunal and what it and other similar judgments mean for the Union. And also about the importance of diversity and mutual respect. Then, fifthly, I will present our view on constitutional pluralism. Next, I will point to the huge risks for the whole society resulting from the application of the EU Court of Justice judgment, which are already materialising in Poland. Finally, I will sum up all the conclusions and look to the future with hope».

Perante a «agitação» (sic) manifestada na face de alguns deputados, o primeiro-ministro polaco citou excertos de acórdãos sobre a primazia do direito nacional emitidos pelos tribunais competentes da Alemanha, da França e da Dinamarca, e lembrou disposições cruciais do Tratado de Lisboa como o artigo 4, que estabelece que a UE respeita a identidade nacional refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais dos EM, e o artigo 5, que estabelece que a delimitação de competências entre a UE e os EM deverá obedecer aos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.

Disposições ao abrigo das quais o governo legítimo da Polónia adoptou o regime legal em vigor de proteção integral da vida dos nascituros sempre que a vida da mãe não estiver em risco comprovado por um médico ou a gravidez não tenha resultado de um crime reconhecido por um procurador.

A UE é de facto apenas mais uma, embora talvez a mais perfeita, das várias molduras que a civilização ocidental criou ao longo de dois mil anos para equilibrar o bem-comum continental com a autonomia dos diversos soberanos; equilíbrio, todavia, repetidamente desfeito pelas diversas formas que o império foi tomando.

Tudo deverá, portanto, ser feito para estancar as pulsões imperiais da burocracia de Bruxelas, porventura animada aqui e ali pelos desígnios de um ou outro EM mais esquecido das lições da História, restaurando o respeito da letra e do espírito dos tratados. Pelos quais os únicos soberanos europeus, as respetivas altas partes contratantes, criaram instituições comuns e lhes atribuíram competências em certos domínios a fim de aumentarem, e não de diminuírem, a liberdade nacional.

Termino identificando-me com mais estas palavras de Mateusz Morawiecki: «The European Union is not a state. The States are the 27 Member States of the Union! The States are European sovereigns – they are the “masters of the treaties” and it is the States that define the scope of the competences entrusted to the European Union».