Vivemos numa sociedade que se afunda, assim como o Titanic. O inatingível navio embateu num inesperado obstáculo que o levou ao fundo. Mas ir ao fundo nem sempre é uma tragédia. Se pensarmos no acto de conhecimento, ir ao fundo é mesmo uma condição necessária.
Uma coisa é certa: impõe-se saber como funciona o conhecimento. E aqui nem preciso referir o que já poderia ter sido feito para evitar tantas desumanidades e atentados à natureza. Olhando para o presente, é evidente um déficit de conhecimento a todos os níveis, com consequências por vezes criminosas. Impõe-se pôr o dedo na ferida e lembrar coisas elementares.
Pouca observação e muita especulação leva ao erro, muita observação e menos especulação leva à verdade, lembrou, entre outros, S. Agostinho. Na verdade, uma melhor observação teria levado a contornar o problema, o iceberg.
Olhando para a guerra na Ucrânia e para a invasão do Planalto em Brasília, observar mais e especular menos, permitiria um mais fiel apuramento do que se passa, poupando vidas e estragos, bem como os imensos tempos de media focados em inutilidades. Desta forma, até a comunicação social beneficiaria deste upgrade de realidade, a exigir uma cobertura adequada.
O método é imposto pelo objecto, é o caminho apontado por S. Tomás de Aquino, outro pilar da Filosofia. Não por acaso outro santo, não por acaso outro influencer do pensamento político ocidental. Ambos marcaram, em doses diferentes, Edith Stein (uma das seis santas co-padroeiras da Europa, canonizada por João Paulo II, com o nome de S. Benedita da Cruz) e Hannah Arendt, duas mulheres também marcantes, que abriram novos caminhos para a Metafísica. Abertura possível, note-se, pela guidance de Husserl, filósofo genial, podendo mesmo afirmar-se que a filosofia contemporânea é um conjunto de notas de rodapé às suas Investigações Lógicas (1900). Tal como ele, importa ir ao fundo, com rigor, ir às coisas mesmas, expressões por ele utilizadas.
Para observar o que se passa em Kiev e em Brasília não é adequado nem o telescópio Webb, nem um tubo de ensaio. Também o que se diz à boca das urnas nem sempre tem o peso que lhe dão. Lembro as filas mediáticas nos funerais da Rainha e no de Bento XVI, onde as muitas “bocas” proliferaram, quer as de quem perguntou, quer as de quem respondeu, e que pouco ou nada esclarecem quem quer realmente saber das matérias. Eu própria quando vivi em Moscovo, estive na fila para ver Lenine (entre Mao, Ho Chi Min, Agostinho Neto, Gueorgui Dimitrov e Estaline, um entre os únicos seis ditadores do mundo embalsamados para culto e devoção), o que não me levou longe, apenas me serviu para umas primeiras impressões.
Não conhecer é como um tiro no Oceano, de acordo com o jogo da batalha naval. E, por muito que a orquestra continue a tocar e os pares dancem ao som do que mais perto lhes chega – o som do embate no enorme bloco de gelo foi abafado pelo encanto dos pares na festa paga a preço de ouro –, tudo isso será sol de pouca dura. Conhecer é ir ao fundo, é, no limite, reconhecer uma dimensão que me escapa mas está presente. Dimensão sem a qual nada do que acontece faz sentido.
Dois amores fizeram duas cidades, é a verdade que Santo Agostinho explicou nos 19 livros que compõem A Cidade de Deus – obra obrigatória para se compreender o que faz a Política e a Paz. A paz, lembra, é a tranquilidade da ordem em todas as coisas.
O amor de si até ao desprezo de Deus faz a cidade dos homens; o amor de Deus até ao desprezo de si faz a cidade de Deus – assim se costuma traduzir este excerto da obra, sendo o “desprezo de” apenas equivalente a “por em segundo lugar”. O que o autor argumenta é que tudo tem um lugar próprio. Tudo tem que estar em ordem. Deus não é o homem; o homem não é Deus. Por isso ambos devem ser tratados pelo que são.
A Cidade dos homens leva o amor de si ao ponto de esquecer ou adiar o conhecimento de uma dimensão sem a qual o conhecimento enferma de um vírus que o engole. Uma sociedade Titanic que se vai afundando. De que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma? E aqui não se vai com o bisturi, nem especulações. Há milénios que a Tradição tem vindo a provar que basta saber observar.