Vivemos imersos numa obsessão com a transparência. Toda a gente clama por mais transparência. Por uma política transparente, por uma economia transparente mas, mais do que isso, por uma vida privada e mesmo íntima, transparente. Sem paredes, sem vidros, sem cortinas: a abertura total. A sociedade transparente. O desvelamento do mundo.

A vida humana, porém, construiu-se sempre num trágico equilíbrio entre o segredo e a revelação. A humanidade é privacidade. Todos nós necessitamos de um espaço e de um tempo só nosso, qual grande reduto da nossa liberdade interior. É, noutras palavras, o núcleo do nosso mínimo ético. O centro onde se cruzam a nossa essência e a nossa existência. O ponto de Arquimedes da dignidade humana. A natureza, essa sim, é nua, aberta, transparente. Exigir, reclamar, pois, a transparência total, é defender o fim do humano e do seu mistério.

Reconhece-se que manter esse equilíbrio é cada vez mais uma tarefa difícil e inglória. Cada vez é mais difícil guardar algum espaço humano livre do olhar ou do ouvido do outro. É cada vez mais difícil o balanço entre, por um lado, a defesa da intimidade, a defesa do indivíduo e da sua circunstância pessoal e, por outro, o interesse público que exige o pleno respeito pelo princípio jurídico-público da transparência. Ou seja, o tema da transparência, não só veio para ficar, como se tornou dominante no espaço público e social.

Assim sendo, justifica-se uma breve reflexão. Esta, contudo, não significa a defesa da opacidade ou do segredo como modo de vida social ou pública, antes pretende constituir um alerta para o perigo do discurso aparentemente sedutor da híper-transparência nas sociedades contemporâneas. Uma coisa é ser a favor da máxima transparência na defesa do interesse público, bem como do uso intransigente da responsabilização política e ética inerente a um verdadeiro Estado de Direito, outra coisa é a demagogia associada à transparência que impera no atual espaço público e, infelizmente, também cada vez mais no espaço privado

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Paradoxalmente, ao mesmo tempo que se exortam as maravilhas da transparência, que proliferam os programas televisivos das casas sem segredos, quando assistimos ao sucesso planetário (infelizmente fogaz) do Wikileaks e dos Panama Papers, assiste-se também ao regresso das fronteiras, ao retorno dos muros, à exclusão, ao nacionalismo xenófobo e radical.

Convém não esquecer que os regimes totalitários sempre exigiram a total transparência na vida dos seus súbditos. Nesses regimes, o recurso ao discurso da transparência significou e, infelizmente, ainda significa, a via aberta para a opressão, o domínio ilegítimo, o controlo irrazoável, numa palavra, a supressão total da liberdade. Como se todos soubessem tudo sobre todos, mas em que alguém, sabendo mais, usa esse conhecimento para edificar um mundo concentracionário, através do qual domina os outros.

Mais preocupante é todavia ter de admitir que o atual modo de vida, mesmo em sociedades demoliberais acossadas pelo flagelo do terrorismo que hiperboliza o sentimento de insegurança, acarreta a armadilha da transparência e da informação total. Também aqui, infelizmente, corremos o risco de pôr em causa o nosso espaço vital de liberdade, o reduto íntimo da nossa a nossa vivência humana.

Para Byung-Chul Han, no seu livro A Sociedade da Transparência, esta obsessão com a transparência manifesta-se, sobretudo, porque a confiança desapareceu e a sociedade aposta na vigilância e no controlo. Segundo o filósofo germano-coreano, a sociedade da transparência é o inferno do igual, isto é, numa sociedade imersa na transparência não existe verdadeiro sentido comunitário, mas a apenas a acumulação de indivíduos incapazes de uma ação cívica conjunta. No fundo, a vontade de vigiar e ser vigiado acaba por parecer algo natural e voluntário, qual ato de aparente liberdade, pois cada qual se lhe entrega voluntariamente, expondo-se ao olhar global, panótico, que transforam os humanos simultaneamente em vítimas e potenciais agressores.

A somar a este estado de coisas devemos, ainda segundo o mesmo autor, juntar o panorama da comunicação e da informação que tudo parece querer penetrar e tudo transforma em vazio, em instantâneo, em não lugar. Estamos perante uma espécie de vento digital que sopra através da sociedade da transparência. Essa rede social, contudo, é apenas aparentemente transparente, pois é a mesma que filtra conteúdos, que induz informações subliminares para consumo ou que cria desinformação política e social em muitos regimes autoritários por esse mundo fora. Não está submetida a qualquer imperativo moral e é, de certa forma, desprovida de qualquer virtual e remoto superego.

A situação agrava-se mais se pensarmos no poder inerente aos diferentes motores de busca, às diversas redes sociais que, apresentando-se como espaço de liberdade, tendem afinal a converter-se num olho gigante, quase infinito, de onde tudo se observa e comenta. E o mais grave é que, ao contrário das soluções distópicas e concentracionárias imaginadas por Orwell ou Huxley, nestes novos espaços públicos, ninguém impõe a transparência, pelo contrário, somos nós que nos sujeitamos alegre e voluntariamente ao seu reino omnipresente.

Em suma, e como disse no início, quer no reino do sagrado quer no domínio do estrito viver humano, nunca poderemos saber tudo, nunca poderemos ver ou ouvir tudo. Haverá sempre um encantamento do mundo que surge do mistério. Existirá sempre um caminho de descoberta. No dia em que esse mistério e esse caminho da descoberta desaparecerem a vida, tal como a conhecemos, deixará de ter sentido.

Mais do que uma sociedade transparente precisamos, isso sim, de uma sociedade translúcida. Muito, muito, lúcida…

Professor universitário