O choque

A derrocada da estrada 255 foi mais um dramático acidente que ocorreu no espaço público, onde houve a lamentar a morte de 5 pessoas. Desta vez o acidente teve lugar na zona dos mármores, que comporta os concelhos de Estremoz, Borba, Vila Viçosa e Alandroal.

O país assistiu através das massivas coberturas mediáticas do evento, o desfilar de inúmeros entrevistados, que aproveitando o” minuto de fama TV”, para lá irem debitando incessantemente comentários e palpites irrelevantes ou completamente desfasados da realidade.

De facto muito poucos especialistas contribuíram decisivamente para o esclarecimento cabal dos factos.

Paralelamente, fomos assistindo às sucessivas alterações discursivas por parte de responsáveis públicos, que apesar das suas obrigações de ofício, lá se iam desresponsabilizando, como quem exerce o poder de forma conveniente e intermitente.

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O acidente

A minha interpretação

Iniciei a minha actividade profissional como engenheiro de minas nas pedreiras de Vila Viçosa e de Borba desde 1988.Tenho trabalhado desde então nesta indústria interruptamente até aos dias de hoje, quer em Portugal como no estrangeiro.

Quando ocorre um acidente desta natureza, concorrem sempre inúmeras e complexas variáveis críticas, quer sejam das ciências naturais – menos concisa, da engenharia – mais rigorosa, da interacção humana, etc. que desgraçadamente se alinham temporalmente para resultarem num acidente desta gravidade.

As variáveis que dependem da Natureza são imensas e surpreendentes quando comparadas com a pequenez do saber humano. É preciso saber e experiência feita quando nos propomos interpretar estas ocorrências.

Pelo que me foi dado observar pelas imagens televisionadas, pelo que conheço do local e até reformulação contrária do irei afirmar, tenho a dizer:

  1. Tratou-se do deslizamento não espectável e drástico de uma enorme massa de pedra sobrejacente a uma enorme falha, que arrastou a estrada 255 numa extensão de mais de centena e meia de metros.
  2. Hoje sabe-se que a falha “assassina”, aflorava algures, por “debaixo” desse troço da estrada, enquanto o outro extremo interceptava um talude da pedreira adjacente.
  3. A menos que tivessem sido efectuados estudos geológicos com suporte geofísico, os quais permitiriam “visualizar” o maciço neste sector, essa falha era “desconhecida” no que se refere à sua caracterização e extensão.
  4. No decurso da exploração da pedreira, para onde se precipitou essa massa pétrea, a falha foi interceptada pelo plano do talude da pedreira, sem que o explorador pudesse alguma vez associara-la a algo mais complexo e perigoso.
  5. A massa de mármore que derrocou esteve “adormecida” desde o momento que essa falha fora interceptada, ficando entretanto “descalçada” e consequentemente instável.
  6. Permaneceu pelo menos duas décadas encaixada no maciço envolvente até que as resistências da sua sustentação fossem vencidas pelo seu peso próprio, fazendo-a precipitar para a pedreira de forma intempestiva.
  7. Ao que me dizem, no tempo anterior à derrocada, a estrada nunca evidenciou quaisquer tipos de assentamentos longitudinais ou transversais, para que se pudesse correlacionar esses eventos, com qualquer falha mais instável e/ou visível no talude da pedreira.
  8. A existência de uma camada de terra que intercalava o pavimento em calçada da estrada e a massa que derrocou, poderá de alguma forma ter “mascarado ou absorvido” qualquer movimento da referida massa.
  9. Mesmo que no talude da pedreira se observassem alguns desprendimentos de pedra, o que é “normal” numa pedreira com lavra suspensa. Jamais se poderia imaginar o risco eminente de uma derrocada de tão volumosa massa de mármore.
  10. Constatou-se agora que a falha “assassina”, estava preenchida com uma camada de barro com possança e extensão variáveis, que desta vez, humedecido pela chuva, poderá ter “ajudado” ao escorregamento da citada massa, devido ao seu efeito “lubrificante”.
  11. Contudo a água esteve sempre presente nesta falha durante estes anos todos, interagindo com o barro, “comportando-se” este de forma inócua e pacífica. O mesmo se poderá dizer do efeito das vibrações induzidas pelo tráfego rodoviário. Ironicamente a tragédia só aconteceu quando o trânsito já tinha sido reduzido drasticamente.
  12. Poderemos agora afirmar, que este trágico acidente poderia ter ocorrido há 15 ou 10 anos atrás ou poderia despoletar-se daqui a 10, 15 ou mais anos.
    Certamente que o acidente há muito que tinha a hora marcada, mas era do desconhecimento de todos e de muito difícil previsibilidade.
  13. Dito isto, sem uma fundamentação técnica rigorosa, os palpites escutados pelos media, têm a mesma credibilidade que a adivinhação do euromilhões.

Outra derrocada

Já testemunhei em pedreiras inúmeras derrocadas de pedras, umas provocadas e outras inesperadas, mas nada semelhante à grandeza desta. Pode-se considerar este acidente, pela sua raridade e volume de pedra, semelhante a um grande acidente natural.

Recordo um evento semelhante que ocorreu há mais de 20 anos, numa pedreira do outro lado da mesma estrada, a escassas centenas de metros do acidente em apreço.

Sucedeu que uma enorme massa de pedra se precipitou inopinadamente para o fundo da pedreira, que só por milagre não vitimou cerca de duas dezenas de pessoas que habitualmente labutavam no fundo dessa pedreira. A “sorte” deveu-se ao facto da derrocada ter ocorrido num tempo em que não estava ninguém a trabalhar. Penso que foi há hora do almoço.

Recordo que essa pedreira era dirigida por um engenheiro de minas competente, que trabalhava em permanência na empresa e que mesmo assim não conseguiu descortinar o risco e a eminencia de uma derrocada daquela natureza.

Hoje deduzo que a falha que esteve na origem dessa derrocada era da mesma família, da falha “assassina”. Essa família de falhas com orientação e pendor semelhantes, atravessam longitudinalmente o maciço rochoso neste local.

Uma curiosidade

Para melhor ilustrar as características peculiares desta zona mamífera, reporto ainda outro evento que ocorreu nos terrenos da empresa onde então trabalhava: a uma distância de 200 metros do meu escritório avistava uma imponente azinheira, que um dia se sumiu. Fomos indagar o destino da árvore, suspeitando então, que poderia ter sido vítima de algum corte furtuito. Para admiração geral, a árvore tinha-se afundado pelo menos 10 metros num enorme buraco com diâmetro de 20 metros. Sucedeu que o tecto de uma cavidade ou algar onde crescera havia colapsado. Mesmo assim a árvore sobreviveu.

A natureza dos terrenos na região dos mármores do Alentejo reservam incontáveis surpresas que só o diabo conhece.

A Estrada 255

A interdição

A estrada 255, outrora estrada real, neste troço que liga Vila Viçosa e Borba, tem a distância de 5,5 Km.

Ao que foi noticiado, quando foi contruída a nova variante Borba – Vila Viçosa, a “Infraestruturas de Portugal – IP” passou a responsabilidade de parte do troço da 255 para a Câmara de Borba, tendo a outra parte sido recusada pela Câmara de Vila Viçosa, continuando assim sob a alçada da “IP”.

Alguns acusam a Câmara de Borba, na pessoa do seu Presidente por não ter interditado essa estrada, pelo facto de estar na presença de um relatório técnico elaborado por uma entidade pública que apontava nesse sentido.

Importava saber, se a “Infraestruturas de Portugal – IP”, detentora do troço complementar dessa mesma estrada, teve na mesma altura conhecimento desse mesmo relatório técnico?

Neste caso penso que a ordem de interdição da estrada se poderia colocar igualmente a ambas entidades, a Câmara Municipal e a IP, porque tanto se poderia ir para a morte os que provinham de Borba como os que vinham de Vila Viçosa.

O não encerramento da estrada

Pelo que conheço das pessoas que estiveram envolvidas nas reuniões com autarquia, a maioria tem uma enorme experiência nesta actividade. Todos eles conhecem inúmeros relatos de acidentes que ocorrem nesta actividade.

Se porventura imaginassem que pudesse ocorrer um acidente desta magnitude, não tenho dúvidas que qualquer um deles teria agido em antecipação, quaisquer que fossem as consequências.

Temos ouvido falar de dois estudos técnicos, um elaborado por uma entidade oficial e outro com origem no IST. Não tive ainda ocasião de os ler, pelo que aguardarei com espectativa, para saber a fundamentação técnica dos seus autores e analisar com atenção as metodologias e técnicas adoptadas, com que entretanto fundamentaram as suas conclusões.

Manutenção da 255

No troço de estrada que é da responsabilidade das “Infraestruturas de Portugal”, no concelho de Vila Viçosa, existe uma curva apertada, que apesar de não existirem quaisquer pedreiras nas redondezas, esta via afunda-se perigosamente num buraco com alguma frequência. Esses problemas têm originando ao longo dos anos inúmeros acidentes, alguns deles mortais.

Uma vez questionei um engenheiro da então “Junta Autónoma das Estradas” JAE, porque ao invés de a cada dois anos, alimentarem o referido buraco com gigantescos blocos de pedra, que se deveriam sumir por algum algar ou falha enorme, se não seria mais conveniente avaliarem o substrato rochoso com o recurso a estudos geológicos apoiados com suporte geofísico, a fim de adoptarem soluções mais eficazes e duradouras?

Respondeu-me que a sua tarefa era remediar os problemas o mais barato possível, pois não haviam verbas disponíveis.

O depois

Quando acontecem acidentes desta natureza, mais do que divergirmos “no passa responsabilidades”, cuja tarefa estará por conta da Justiça, o que importa agora, é projectar o futuro para que nunca mais tenhamos que nos lamentar.

Este é o momento, para os especialistas debaterem e focarem-se nas soluções correctivas e estruturais sustentáveis que se impõem para as próximas décadas.

Como contributo deixo estas notas para reflexão:

  • Deveremos ter em atenção que neste sector trabalham mais de cinco mil e trezentas pessoas;
  • O sector extractivo localiza-se maioritariamente em regiões, em que as populações na generalidade têm baixas qualificações e as alternativas de trabalho são poucas ou nenhumas;
  • Não deveremos agora cair na tentação de querer passar dos oito para os oitenta, em que se proponham “soluções de gabinete” aparentemente geniais, em que as empresas não as possam as concretizar.

A exploração de mármores, de calcários e de granitos ornamentais disponibilizam anualmente 45,7 milhões de toneladas, o que perfaz 4,6 toneladas de inertes por português. Há 10 anos eram 12 toneladas por pessoa. O volume de negócios é de 320 milhões de euros (Fonte: DGEG – 2015).

Engenheiro de Minas (Instituto Superior Técnico – Universidade de Lisboa), Consultor