Vivemos dias de tragédia. A tragédia da morte de um cidadão, a tragédia de um jovem polícia que disparou e matou, a tragédia do motorista da Carris que foi queimado, a tragédia dos passageiros esfaqueados. O drama de quem viu o seu carro arder que certamente tanto lhe custou a ter, como aconteceu nos distúrbios dos dias seguintes.

No meio desta tragédia houve quem, no espaço público, considerasse que era boa ideia alimentar a revolta, a fúria, que todas as tragédias geram.  Foram muitos os que não o fizeram, incluindo o movimento Vida Justa quando decidiu mudar o destino da sua manifestação para evitar o encontro, com riscos de confronto, com o Chega. Ou ainda a forma como actuou o presidente da Câmara de Oeiras Isaltino Morais que se deslocou aos bairros, apelou à calma, que foi ao velório de Odair Moniz.

De todos os comportamentos responsáveis e palavras ditas com bom senso, vale a pena salientar as de Carlos Guimarães Pinto na CNN Portugal que podem ser ouvidas aqui. Porque é uma lição de cidadania e racionalidade, de bom senso que tanto vai faltando, de responsabilidade enquanto figura com exposição pública, faz-se aqui a transcrição do que disse porque vale a pena ler e, algumas pessoas, deviam até ler (e ouvir) várias vezes:

“Quem tem exposição publica, políticos, jornalistas, tem um dever especial de tentar trazer racionalidade e não contribuir para incendiar, para acicatar ódios. Sobre esta situação especifica, sobre aquilo que tem sido discutido: É possível que uma pessoa que é amada pela sua família, pelos seus amigos, pela sua comunidade, seja simultaneamente um criminoso que tenha ameaçado a vida de um polícia? Sim, isso é possível. Sabemos se foi esse o caso? Não, não sabemos se foi esse o caso. Se tivesse sido esse o caso é legítimo generalizar este comportamento para outras pessoas da mesma família, do mesmo bairro? Não, não é legítimo fazê-lo. É possível que um criminoso seja ao mesmo tempo vítima de excessos de violência da polícia? Sim, também é possível. Sabemos se foi esse o caso? Não, não sabemos se foi esse o caso. Se tiver sido esse o caso, podemos generalizar este comportamento para todos os restantes elementos da polícia? Não, não podemos, não devemos. 

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Seja qual for a verdade que venha a ser apurada eu tenho a certeza que a maioria, a esmagadora maioria das pessoas daquele bairros são pessoas de bem que só querem ter uma vida melhor e são as principais vítimas do crimes. Tenho também a certeza absoluta que a esmagadora maioria dos polícias são profissionais dedicados que, com salários demasiado baixos, garantem a segurança de todos e que, tudo o que querem, é o que todas as pessoas querem e merecem, é saber que chegam todos os dias a casa vivos e seguros. E merecem ter essa garantia. (…)

Enquanto pessoas com exposição publica temos a obrigação de não retirar conclusões baseadas em preconceitos sem antes conhecer a verdade, sem que antes exista uma investigação. Temos o dever de não acicatar ódios. Acicatar ódios tem consequências, como vimos com o condutor daquele autocarro que não esteve de nenhuma forma envolvido nisto, não tem responsabilidades nenhumas e acabou como uma vítima. Temos o dever de não contribuir para quebrar a confiança entre a comunidade e as policias, porque essa quebra de confiança leva exactamente a que estes ódios existam e que este tipo de casos possa acontecer com mais frequência”.

Carlos Guimarães Pinto resumiu como mais ninguém como nos devemos comportar em momentos de tragédia extrema, em que a tragédia pode alimentar novas tragédias se atirarmos mais achas para a fogueira.

Todos temos de ter bom senso se não quisermos atear uma fogueira que já dá sinais de arder há algum tempo. E que, agarrados a narrativas políticas de conveniência, alguma classe política com responsabilidades tem recusado reconhecer. E quando não reconhecemos sequer que existe um problema, não o resolvemos e vamos encontrá-lo mais à frente muitíssimo mais grave e difícil de enfrentar.

As estatísticas não são apenas números, retratam realidades. Existe hoje uma classe trabalhadora pobre, que todos os dias enfrenta dificuldades para ir trabalhar, num país em que se degradaram os transportes públicos, em que as casas estão demasiado caras, em que a inflação tornou a alimentação um exercício de aritmética difícil, onde não há creches ou espaços para deixar as crianças desenvolverem-se saudavelmente, onde os adolescentes e jovens são deixados entregues a si próprio sem nada para fazerem. Juntemos ainda um acesso à saúde que não existe para quem mais precisa e uma escola pública que se degrada especialmente nas zonas onde vivem os que trabalham com salários baixos. E ainda políticas sociais que não têm critérios para apoiar estas pessoas que trabalham a receberem salários baixos.

Os sinais de que estávamos a criar barris de pólvora já existiam pelo menos desde 2021. De acordo com o relatório de segurança interna, a criminalidade grupal aumentou 7,7% em 2021, 18% em 2022 e 14,6% em 2023. Em três anos aumentou 45%. Mas preferimos manter a narrativa de que somos um dos países mais seguros do mundo, sem perceber que atrás dos números globais desenvolvia-se uma criminalidade que podia provocar distúrbios e gerar insegurança.

O mesmo se tem passado com a imigração, rejeitando-se perceber que uma comunidade tem um limiar a partir do qual começa a rejeitar imigrantes, mais grave ainda se compreenderem mal a sua cultura. Alguma classe política não compreende que têm consequências igualmente negativas abrir as portas à imigração, sem que essas pessoas sejam minimamente acompanhadas e tenham trabalho, como diabolizar os imigrantes. Ainda bem que este Governo começa a ter alguma coragem para enfrentar esta situação sobre a qual até há pouco tempo era quase proibido falar.

Alguma classe política, com mais ou menos responsabilidades governativas, tem andado a brincar com a segurança. Os excessos em defesa da polícia têm a sua imagem espelhada nos excessos de ataques à polícia que, como diz Carlos Guimarães Pinto, tem na esmagadora maioria do seu corpo profissionais dedicados, correndo todos os dias riscos de vida por um salário demasiado baixo.

Depois temos a política de habitação que foi seguida no passado. Em vez de integrar várias classes sociais num bairro, criaram-se bairros de pobres na chamada habitação social. Todo um conjunto de incentivos perversos levou à construção desses espaços, frequentemente depois esquecidos e abandonados, onde vai faltando quase tudo, ou quase tudo se degrada.

Nunca se falou tanto em inclusão e responsabilidade social e nunca como hoje temos uma sociedade em bolhas e com sérios sinais de estar deslaçada. Os ricos e a classe média alta têm seguros de saúde, os filhos na escola privada – enquanto em geral clamam pelo SNS e pela escola pública -, vivem no centro da cidade ou em condomínios fechados, e andam sempre de carro – enquanto clamam pelo maior uso do transporte público que nem sabem que pouco existem em algumas zonas. Os pobres vivem em bairros ditos problemáticos ou periféricos, levam mais de uma hora para chegarem ao seu trabalho mal pago, não têm onde deixar as crianças e os jovens que andam na escola pública, quando estão doentes não podem ir ao hospital privado, e são autênticos engenheiros financeiros na gestão da casa. E são estas pessoas que depois também vêem como o sistema de apoios sociais é manipulado.

A tragédia que vivemos nestes últimos dias, e que é de todos, exige responsabilidade na análise e no comentário, como diz Carlos Guimarães Pinto. E devia ser um alerta para acordarmos e vermos a comunidade que estamos a construir. Por objetivos em geral de política partidária estamos a radicalizar a sociedade, a gerar desigualdade e a degradar as instituições.  Há doenças que estão a germinar na nossa comunidade e que têm de ser enfrentadas com bom senso e coragem.