1 Deixo aqui, pouco tempo depois do dia das bruxas, esta imagem: o Nuno Melo e o Álvaro Amaro, de varinha mágica em riste, cada um com a respetiva vassoura voadora, sob a soturna lua cheia de Bruxelas. Planam rente ao Parlamento Europeu, deixam o seu voto e, em coro, assombram refugiados e outras minorias, até ao belo momento em que, entre o lusco-fusco, um cavaleiro de cavalo vermelho galopa contra eles, em nome do amor, da fraternidade e dos sacrossantos direitos constitucionais.
2 A generalidade dos órgãos de comunicação social tem pintado um cenário análogo, entre os quais o Público, que chegou inclusive a publicar uma comovente carta aberta aos eurodeputados com frases como “é o vosso nome que assina por baixo desta Europa obcecada pela militarização e proteção das suas fronteiras, ignorando – numa indiferença cruel – os que morrem à sua porta”. Comovente, mas começo a ter arritmias sempre que leio um título sobre o caso, pela fascinante seleção cirúrgica de factos que tem sido feita.
3 Fica, antes de mais, aqui uma declaração de motivos: não sou afiliado a nenhum partido. Fica o repto para que, caso o leitor duvide da acuidade objetiva do que está a ler, faça uma pesquisa sumária, vá ao Google, contrate um detetive privado ou vá ao próprio Parlamento Europeu ler os registos do plenário.
4 Quem consulta alguns jornais ou rádios, ficará com a seguinte ideia: alguns eurodeputados da direita portuguesa encarnaram a figura do próprio de Satanás e decidiram, pela própria mão, sabotar a imaculada proposta do Partido Socialista Europeu para criar uma “lei” que resolveria imediatamente o problema dos refugiados. A “proposta de lei” não passou por dois votos, graças à extrema direita europeia, culminando, assim, na inexistência de um regime jurídico para apoiar os refugiados.
5 Evidentemente, é irrisória esta conceção e qualquer pessoa, com mínima diligência após pesquisar os factos, descobrirá que não são assim.
Em primeiro lugar, a ideia de que se sabotou uma “imaculada proposta” não pode estar correta.
Na verdade, 290 eurodeputados – concretizando uma vitória por maioria simples – rejeitaram o texto redigido pelo socialista Juan Fernando López Aguilar.
Pode ter, francamente, elevadíssima beleza literária, mas não deixa de ter vários erros que se encontram na proposta de resolução, que conduziram ao seu chumbo. Entre eles:
- Não se diferencia entre refugiados (asylum seekers) e outras espécies de migrantes
- Alude-se inocentemente às ONGs e às entidades privadas face à situação do Mediterrâneo
- Desresponsabiliza os Estados que não pertencem à União Europeia
Agora, que espécie de facínora serei eu, que distingo migrantes, entidades que os socorrem e reclamo dos outros Estados do Mediterrâneo?
Depois, não serei um facínora muito bom: não tenho poder legislativo, tampouco assento parlamentar, nem opinei sobre os factos. Mas não deixo de indicar os motivos para estas reticências do Parlamento Europeu:
Não se diferenciando entre refugiados e outros migrantes, incorre-se no problema principalmente técnico-jurídico de não saber que regime aplicar a cada qual. Os migrantes económicos que não residem na Zona Schengen, não devem passar por um processo de imigração normal? Por que razão deve ser tratado como um refugiado, que foge de um cenário de guerra por motivos de extrema necessidade?
Estas questões não são minhas, nem de qualquer setor político suspeito. São perguntas tecidas pela Organização das Nações Unidas. Uma visita rápida ao seu site referente a Refugiados e Migrantes faz notar, imediatamente e por diversos motivos, que há uma diferença:
- Em primeiro lugar, o próprio título da página: Refugiados e Migrantes
- Em segundo lugar, há duas secções no site: a referente a migração e a referente a refugiados
- Em terceiro lugar, e mais importante, dá-se uma definição para caracterizar os migrantes e os refugiados.
Pelos vistos, enquanto os migrantes mudam o seu país de residência habitual, os refugiados são pessoas que estão fora do seu país de origem por razões associadas ao medo de perseguição, conflito, violência generalizada ou outras circunstâncias que disturbaram severamente a ordem pública e postulam proteção internacional.
Os refugiados são todos migrantes, mas os migrantes não são todos refugiados.
Quando aludimos a ONGs e a entidades privadas no salvamento de refugiados no Mediterrâneo, precisamos de entender o cenário subjacente. Algumas organizações e entidades privadas são derradeiros negócios, existindo várias investigações sobre o caso em concreto.
São negócios de tráfico humano, como há vários no Norte de África, que se ocupam de uma função em que não há Estado: transporte transfronteiriço de migrantes – não refugiados – em condições terríveis. Ao falarmos de entidades privadas no tráfico humano deve ser, certamente, para instar que cumpram os preceitos de direito internacional. Como não tem sido o caso.
“Desresponsabiliza os Estados que não pertencem à União Europeia”, por mais que pareça um chavão reacionário, aplica-se à proposta de resolução. A única referência a esses Estados é aquela de quando se “exorta [a] todos os intervenientes no Mediterrâneo a transmitirem de forma proativa informações sobre as pessoas em perigo no mar às autoridades responsáveis pelas operações de busca e salvamento”, ou seja, só há um dever de informação que acaba por relegar a responsabilidade para os Estados europeus, ONGs e entidades privadas.
Em segundo lugar, nunca se pretendeu “criar uma lei”, como dizem alguns meios de comunicação social, por lapso.
O valor jurídico dessa resolução nunca seria o equivalente a uma lei: seria uma recomendação, sem valor vinculativo, como se pode notar pelos verbos utilizados na proposta: “insta”, “exorta”, “recorda”, “reitera”.
Em terceiro lugar, não foi graças à “extrema direita” que a União Europeia não aprovou a proposta de resolução do Partido Socialista Europeu. Não foi, porque 290 eurodeputados votaram contra a proposta. Num parlamento de 750, se quase 300 votaram contra a moção e 36 se abstiveram, então estamos mal: a União Europeia será metade de extrema direita. Será a favor da morte dos refugiados e contra os direitos fundamentais consagrados pelos respetivos parlamentos em que são, em grande parte dos casos, maioria.
Em quarto lugar, isto não culmina na “inexistência de um regime jurídico”. A Frontex – Agência Europeia de Fronteiras e Guarda Costeira – alargou as suas competências devido à crise de refugiados e fazem parte do seu mandato operações de busca e salvamento no Mediterrâneo. Além disso, o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo (EASO) e o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) também foram criados em benefício dos refugiados, a par de uma quantidade imponente – e, acima de tudo, politicamente consentânea, entre a esquerda e a direita – de legislação de apoio a refugiados.
Em quinto lugar – e isto tem sido a mais escandalosa falta de honestidade intelectual de muitos órgãos de comunicação social –, isto nunca se tratou da ação de “alguns eurodeputados da direita portuguesa”: a proposta do Partido Socialista Europeu foi uma de quatro a ser votadas na terça feira, dia 22 de outubro de 2019. Ombreou com as propostas do PPE, ID e ECR, que foram rejeitadas – por sinal, pela esquerda portuguesa – e que se ocupavam, igualmente, da questão dos refugiados – nomeadamente a do PPE, que é de uma direita mais moderada e na qual constava que “a política de migração da UE deve basear-se na distinção clara entre migrantes económicos e refugiados” — não porque uns merecem a vida e outros não, mas porque são situações diferentes que merecem ser abordadas consoante a medida da sua diferença.
6 Não quero lançar opiniões políticas – isso já fazem muitos. Denuncio apenas os órgãos de comunicação social que lançaram notícias falsas por uma questão de mediatismo e a atitude de alguns – como Marisa Matias, que desonestamente publicou um artigo a repudiar a votação da proposta de resolução socialista, tendo rejeitado outras três que serviam o mesmo fim. Isso não serve para nada senão para manipular.
Limito-me a citar Adolfo Mesquita Nunes – não por ideologia, mas pela lógica da citação: “Como é que, havendo consenso sobre a necessidade de salvar as pessoas no Mediterrâneo, não se chega a uma proposta consensual para ser votada por todos? Não se chega porque não é útil para o combate político que muitos partidos querem fazer.”