Veio a público uma “nova política de habitação”. Com pompa e circunstância, todos aplaudem o anúncio: em 2024 a ninguém vai faltar casa condigna; em dez anos vamos ter 100 mil novos arrendamentos acessíveis, dos quais 10 mil públicos.

Claro, horizontes temporais onde nem num eventual próximo mandato como Primeiro-Ministro António Costa terá de prestar contas. Alguém se vai lembrar do que foi anunciado em 2018? Alguém se lembra dos anúncios de José Sócrates em 2008?

O eixo central da “nova política” é a Renda Acessível e propõe-se aplicar ao país o que foi ensaiado no laboratório da Câmara Municipal de Lisboa (tal como hoje o Bloco de Esquerda aqui ensaia políticas como as salas de consumo assistido ou a oficialização do conceito de “trabalhadoras do sexo”).

Em Lisboa, Fernando Medina propôs-se, em 2016, oferecer 7 mil fogos em dez anos, para assim recuperar os 300 mil habitantes que a cidade perdeu entre 1981 e 2011… fora os que desde então continua a perder, a um ritmo superior à oferta do seu Programa Renda Acessível. À boa maneira socialista, a resposta é estatizante: nos próximos anos, a classe média que queira casa em Lisboa deve submeter-se a um sorteio ou a listas de espera, rendendo-se a um programa que pouco mais será senão um paliativo para a dimensão do problema. E Lisboa vai continuar a perder habitantes, exatamente os jovens e a classe média que era suposto segurar.

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Também saída de Lisboa, a frente de esquerda ficou contente com os anúncios de Helena Roseta: agora é que vamos deitar mão às casas que os burgueses capitalistas mantêm propositadamente vazias para especular. Não vai acontecer, mas a ameaça abriu o caminho: serviu para assustar toda a gente e aumentar a recetividade às políticas afinal “moderadas” de António Costa.

Bem pensado, Helena Roseta é o polícia mau e António Costa o polícia bom. E enquanto o número de circo enche jornais, o PS de Centeno prossegue o seu caminho. Se já “desisti” de perceber como consegue António Costa amarrar ao silêncio todas as frentes de centro-esquerda-e-direita perante o esmagamento do Serviço Nacional de Saúde (imaginem o que não seria se a situação do Hospital de São João fosse com Pedro Passos Coelho), a “nova política de habitação” continua a manter a zeros no Orçamento de Estado o subsídio social de renda previsto na Lei do Arrendamento para os contratos anteriores a 1990.

Solução? Transfere-se para os proprietários privados o esforço que deveria ser do Estado, recuperando o sonho neo-Gonçalvista do congelamento das rendas. Claro que o mais evidente passa ao lado: com a “nova política” passou a ser inacessível arrendar casa para alguém com mais de 65 anos ou com deficiência, pois nenhum proprietário estará disponível para correr o risco da vitaliciedade forçada dos contratos.

E o ónus para as autarquias? Será que agora, finalmente, vão disponibilizar para o arrendamento acessível os milhares de fogos municipais devolutos a que nunca souberam dar uso? Veja-se o caso de Lisboa, onde se estima que a Câmara Municipal seja proprietária de mais de 2 mil fogos devolutos, apesar do esforço de Fernando Medina em ocultar estes números.

E o papel dos serviços do Estado e das Misericórdias, igualmente grandes proprietários de fogos devolutos em Lisboa e no Porto? Antecipa-se que, no caso da Administração Central, estes fogos venham a ser transferidos para que autarquias como Lisboa os juntem aos milhares de fogos vagos que já mantêm fechados.

A “nova política de habitação” é insuficiente: (i) promove um choque fiscal de incentivo ao investimento em contratos de arrendamento de longa duração, o que é positivo, mas que isoladamente não chega; (ii) não cria confiança no mercado de arrendamento, antes pelo contrário, requisito sem o qual o choque fiscal não basta; (iii) propõe como paliativo a dez anos a atribuição dos fogos públicos devolutos, o que nunca foi capaz de cumprir e que fica muito longe de responder às atuais necessidades (iv) avança para uma cultura de Estado mega-senhorio a quem a classe média fica a dever vassalagem se quiser uma casa; (iv) não trabalha a resposta estrutural, que é a regulação do mercado com vista ao aumento significativo da oferta habitacional onde esta faz falta, criando a confiança necessária no setor para que a promoção privada venha a jogo.

Sempre desconfiei de quem se autointitula. De “nova”, esta política tem apenas um choque fiscal. Que será bem-vindo, mas que é manifestamente insuficiente e está fatalmente ferido pela instabilidade que continua a ser lançada sobre o setor do arrendamento. Tudo o resto cheira a mofo, entre o congelamento de rendas, a estatização do acesso à habitação e a política do anúncio a dez anos ao melhor estilo de José Sócrates.

Vereador do PSD na Câmara Municipal de Lisboa; Professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa