A Conferência de Reparações decorreu na passada semana em Acra, no Gana, com a participação de representantes de vários países africanos. Teve como principal objectivo elaborar uma agenda sobre reparações pelas injustiças e danos históricos causados a África e aos africanos. Ou seja, à semelhança do que ocorre nas Caraíbas, a África procura organizar-se politicamente para apresentar uma frente unida e a prometida factura aos antigos países coloniais pelo facto de o terem sido.
Um dos participantes na conferência foi Adão de Almeida, o ainda relativamente jovem ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente da República de Angola. Na sua intervenção, em representação do próprio presidente João Lourenço, Adão de Almeida disse — e transcrevo do Jornal de Angola — que “a história da humanidade regista, nas suas mais tristes páginas, séculos de colonização em que alguns povos ocuparam territórios de outros, subjugaram os povos nativos, pilharam recursos naturais, impuseram padrões culturais estranhos e comprometeram o futuro de várias nações”. Para reforçar essas ideias e a noção de prejuízo material e imaterial, e da correspondente dívida histórica, Adão de Almeida deambulou por uma ficção: a de que durante 500 anos os angolanos teriam sido subjugados. Isso, claro está, desresponsabiliza totalmente os antepassados dos actuais angolanos pelas decisões políticas ou económicas, nomeadamente as ligadas ao tráfico de escravos, que foram, então, tomadas — “naquela altura, não éramos nós próprios, não tínhamos direitos, não tínhamos capacidade de decidir sobre o nosso destino”, afirmou. Feita a deambulação, o ministro angolano concluiu que “nunca saberemos que África teríamos hoje, se não tivesse havido a colonização e a escravatura, assim como nunca saberemos o que seriam hoje as então chamadas potências colonizadoras. Mas sabemos, com certeza, que ambos seriamos diferentes”.
Nesta passagem Adão de Almeida transmite, de forma explícita, uma mensagem enganadora — a de que não havia escravatura em África antes da colonização — e deixa implícita a ideia de que África teria sido melhor, mais próspera, mais feliz, se nunca se tivesse cruzado com as tais “potências colonizadoras”. Claro que, vendo as coisas pelo lado inverso, poderíamos perguntar ao ministro angolano como imagina que teria sido a África subsariana se não lhe tivessem chegado, vindas da Europa, as estradas modernas, o caminho de ferro, o navio a vapor, as vacinas e a medicina europeia e outros benefícios que chegaram com o colonialismo. Foram só coisas más que vieram da Europa? De qualquer modo o que mais importa notar é que este raciocínio de Adão de Almeida parece muito ingénuo, demasiado ingénuo, para ser tomado pelo seu valor facial. Na verdade ele é facilmente contestável até por simples analogia. Reparem: o que o ministro angolano afirmou e a conclusão a que chegou, podia ser dito não apenas acerca dos antigos povos de Angola e de África em geral, mas sobre todas ou quase todas as outras gentes que povoam e povoaram o mundo e ocupam as páginas daquilo a que chamamos História. Podia ser dito, desde logo, acerca de Portugal e dos portugueses. De facto, nunca saberemos que Portugal teríamos hoje se não tivesse havido séculos de ocupação e colonização romana ou, depois, de domínio árabe. Esses e outros povos vieram até este rectângulo da Europa Ocidental e fizeram muito daquilo que o ministro angolano aponta aos antigos colonizadores de Angola: ocuparam territórios, subjugaram os povos nativos, pilharam recursos naturais, impuseram padrões culturais estranhos e comprometeram o futuro dos iberos e celtas e, posteriormente, das populações romano-germânicas que aqui viviam. E isto que afirmo acerca do Portugal romano ou árabe poderia ser dito sobre outros momentos, ainda que mais pontuais, do nosso passado colectivo — qual teria sido o rumo de Portugal se não tivesse havido as invasões francesas, por exemplo? — ou acerca de qualquer outro país da Europa, da Ásia ou de outro ponto do mundo. Que teria sido desse mundo se não tivesse havido guerras e conquistas, dominadores e dominados, vencidos e vencedores?
Custa a crer que Adão de Almeida não tenha feito a si próprio essas perguntas e que não saiba que a História, toda a História, é um tecido de interacções no qual nunca há o átomo puro, primordial e isolado ou isolável, como em Química. Nenhum povo conseguiu viver até ao século XX sem contacto directo ou indirecto com os vizinhos, sem influências tecnológicas e culturais. A História do nosso mundo é uma história de descoberta, de quebra de barreiras e dos isolamentos. De violências e de abusos, também, infelizmente, e todo o mundo, não apenas África, esteve e está sujeito a elas.
Adão de Almeida sabe certamente tudo isto. Talvez saiba, igualmente, que a chamada História contrafactual — como teria o país X ou o século Y se Z não tivesse acontecido? — é um método especulativo que não recolhe grandes simpatias entre os historiadores. Estou, por isso, em crer que aquilo que nos disse não decorre de ingenuidade, mas de astúcia; que não decorre de desconhecimento, mas de política, isto é, da construção de um discurso voluntariamente pouco elaborado, esquemático, que visa culpabilizar os actuais portugueses, entre outros europeus herdeiros dos colonizadores de séculos passados, para, num segundo momento, os fazer pagar uma conta choruda. Tanto assim é que os países africanos se preocupam, também, muito inteligentemente, em controlar e difundir a narrativa culpabilizante. Como sublinha o Jornal de Angola, “os países africanos vítimas do colonialismo precisam de assegurar que a história seja contada às novas gerações, para que jamais se repita”.
E isso é feito tanto a nível interno como externo, por via da ONU e das suas ramificações e caixas de ressonância nos próprios países ocidentais. A África constrói esse discurso e apresenta-o repetidamente na própria ONU e em muitos outros palcos. Fá-lo de forma persistente, metódica e astuciosamente simples, de modo a que ele possa ser acreditado e absorvido por qualquer pessoa. Esse discurso repete à exaustão mensagens de propaganda política como, por exemplo, a de que a colonização e a escravatura foram “os maiores crimes contra a humanidade” na convicção de que tantas vezes repisada essa avaliação subjectiva, inverificável, mas fortemente culpabilizante, acabara por transbordar do espírito do típico universitário woke, onde já se impôs e ganhou raízes, para o resto das cabeças ocidentais.
Insisto, por isso, na ideia de que Portugal deve preparar-se para enfrentar esse combate ideológico, político e diplomático. Como The Guardian informa, com o acto final da conferência de Acra vai haver — ou já terá havido na data em que este meu artigo for publicado — uma declaração formal. Ainda não a conheço, mas para já sei que haverá uma junção de esforços, uma espécie de coligação, entre os 55 países da União Africana e os 20 países da região das Caraíbas para exigir reparações pelo tráfico transatlântico de escravos aos países ocidentais que o praticaram e ambas as organizações estão a pensar enveredar pela litigância, recorrendo aos tribunais. Portugal deve ir pondo as suas barbas de molho. E deve, para além disso, esforçar-se para pôr de pé uma versão mais equilibrada, mais verdadeira, mas ainda assim relativamente simples da História que possa contraditar a versão histórica ultra-resumida, quase panfletária e só aparentemente ingénua a que, com muita astúcia, os políticos e ideólogos africanos se têm agarrado e posto a circular.