A Constituição da República Portuguesa foi recorrentemente referida pelos candidatos às últimas eleições presidenciais. Enquanto um candidato, dito da extrema-direita, manifestou a intenção de rever constitucionalmente a lei fundamental, os candidatos da extrema-esquerda repetiram, até à saciedade, o seu propósito de cumprir e fazer cumprir a actual Constituição da República.
A Constituição é a lei fundamental, sobre a qual assenta o ordenamento jurídico e a organização do Estado, mas o reconhecimento da sua transcendência não deve levar ao fundamentalismo de a considerar como se fosse um livro sagrado e, como tal, irreformável. Ao contrário da Bíblia, a Constituição não é de inspiração divina e, portanto, é susceptível de revisão, desde que sejam salvaguardados os limites materiais e circunstanciais previstos nessa lei (Art. 288º e 289º, respectivamente). A Constituição, aprovada em 1976, já foi várias vezes revista, nomeadamente para a expurgar dos elementos ideológicos que se ficaram a dever ao momento revolucionário em que foi redigida. Contudo, não convém que a lei fundamental esteja a ser constantemente alterada, porque uma tal prática provocaria insegurança jurídica e institucional: é por este motivo que, para a sua revisão, se requer um alargado consenso parlamentar, não sendo suficiente uma maioria conjuntural, como a que agora aprovou a eutanásia.
Ao contrário do que alguns supuseram, não há nenhuma contradição em que um candidato presidencial se proponha ser eleito Presidente da República, jurando cumprir e fazer cumprir o texto constitucional e, em simultâneo, defenda a revisão da Constituição, desde que se proponha alterar a lei fundamental através dos mecanismos que essa lei prevê para o caso. Caso contrário, haveria uma ruptura constitucional, como aconteceu com o 25 de Abril, em relação à Constituição do Estado Novo.
Como o que agora se pretendia era rever a Constituição a partir da própria Constituição, não há nenhuma hipocrisia neste propósito. Aliás, todos os Presidentes da República que juraram um texto constitucional que foi legitimamente alterado durante o seu mandato, não foram infiéis ao que tinham solenemente prometido, precisamente porque a Constituição que juraram cumprir e fazer cumprir, não obstante as reformas introduzidas, se manteve idêntica na sua essência.
O que já não é aceitável em termos éticos, nem jurídicos, é que alguns deputados, não obstante as suas loas à Constituição da República Portuguesa, pretendam violar um dos seus mais fundamentais princípios, por via de uma lei ordinária, como é a que pretende legalizar a eutanásia e o suicídio assistido.
Com efeito, o texto constitucional é claro e peremptório: “A vida humana é inviolável” (Art. 24º, 1). Este princípio é enunciado de forma universal, sem nenhum limite ou condição. A Constituição obriga ao respeito pela vida humana, tanto na sua fase inicial como terminal, mesmo contra a vontade do próprio que, da mesma forma como não está autorizado a renunciar à sua dignidade, ou liberdade, também não pode, em termos constitucionais, reivindicar um pretenso direito à disponibilidade do seu direito à vida.
A vida humana é inviolável, sem excepções. A inviolabilidade da vida humana é um princípio constitucional, não uma simples regra jurídica: estas podem ter excepções, mas não um princípio constitucional, que só pode ser afirmado ou negado. Este direito fundamental não depende da idade do sujeito, nem da sua saúde, nem da sua nacionalidade, nem das suas disposições, nem dos seus méritos ou culpas. Não se trata de um direito que possa ser condicionado no seu exercício: os direitos humanos gozam desta universalidade e imperatividade, que não pode ser relativizada sem que seja negado o próprio direito. A garantia da inviolabilidade da vida humana é um dever do Estado que, portanto, se estaria a contradizer se disponibilizasse os seus serviços para a prática inconstitucional da eutanásia, ou do suicídio assistido.
Quando o Estado permite a legítima defesa e a guerra, ou operações cirúrgicas de que decorre o óbito, ou uma lesão, não contradiz o princípio da inviolabilidade da vida humana, porque o fim pretendido nesses casos é legítimo: a defesa, pessoal ou nacional, ou a saúde do doente. Pelo contrário, a eutanásia e o suicídio assistido têm como único objecto e fim causar a morte de uma pessoa inocente e, por isso, contradizem o princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana.
Uma vida humana que só é inviolável às vezes, é uma vida humana que é violável. Portanto, admitir uma excepção ao princípio constitucional da inviolabilidade humana não é permitir o seu incumprimento num caso singular, mas contradizer e negar, formalmente, esse direito: uma vida humana que pode ser violada, mesmo que o seja apenas em ocasiões muito excepcionais, já não é constitucionalmente inviolável. A legalização da eutanásia não é de forma alguma compatível com o referido preceito constitucional e, portanto, a sua eventual promulgação significaria, na prática, a revogação do princípio da Constituição da República que estabelece categoricamente a inviolabilidade da vida humana. Na medida em que essa alteração seria introduzida à margem dos mecanismos previstos para a reforma do texto constitucional, seria formalmente inconstitucional e política e moralmente ilegítima. Se o Parlamento quiser revogar o princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana, tenha, pelo menos, a decência de o fazer pela única via legal: a revogação, em sede de revisão constitucional, do nº1 do Artigo 24º, mas não por via da aprovação de uma lei ordinária que contradiz, grosseira e descaradamente, a Constituição!
O Parlamento não só não quis auscultar o povo português, por via do referendo, como agora, pelos vistos, quer dar o golpe de realizar, através de uma lei ordinária, uma autêntica reforma constitucional, aproveitando-se da conjuntural maioria de esquerda. À indecência do propósito, acresce a forma ilegal e imoral como pretende impor uma reforma constitucional, sem observar os requisitos que a própria Constituição prevê para a sua revisão. Ou seja, o Parlamento quer dar um golpe de Estado constitucional!
Ao Chefe de Estado compete cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa em vigor, não a Constituição que alguns deputados quereriam que fosse a nossa lei fundamental. O Presidente da República não pode ceder ante o oportunismo golpista dos que, violando a letra e o espírito da Constituição, querem aprovar leis que não só a desdizem, como formalmente a contradizem. Foi para essa missão que recebeu agora, por segunda vez, o voto de confiança da maioria dos portugueses, que expressivamente sufragaram a sua reeleição presidencial.