O povo diz, com razão, que “no meio está a virtude”. Também no combate político, a maior virtude está ao centro, um espaço que não é (como muitos o apelidam) um “mito”, “inexistente”, ou um “buraco negro”. É, no balanço da esquerda e da direita, na súmula das virtudes de ambas, que se ganham eleições, se governa com estabilidade e se influencia a política através da construção de pontes e do delinear de linhas vermelhas.

A lição do potencial do apelo ao “extremo-centro” e dos custos de o abandonar é-nos dada com extremo detalhe pelo exemplo do partido liberal do país vizinho, Cuidadanos. Criado em 2006, como resposta à crescente vaga de nacionalismo catalão, o Cs definia-se inicialmente como um partido de centro-esquerda entre a social-democracia e o liberalismo social, com uma plataforma assente essencialmente nos temas da soberania nacional e do combate ao radicalismo da secessão catalã.

O grande salto do Ciudadanos da Catalunha para as urnas de toda a Espanha deu-se em 2015, pouco antes da crise independentista de 2017–2018, em que o partido e o seu líder (Albert Rivera) foram as vozes mais audíveis no país contra a independência catalã. No período de 2006 a 2017, os liberais espanhóis abandonaram a influência da social-democracia, assumindo-se como são: liberais, e ao centro, recusando a simplificação do espectro político numa falsa dicotomia esquerda-direita. Nas eleições legislativas de 2015, o Cs alcançou 14% dos votos e 40 deputados e em 2016 13% dos votos e 32 deputados.

Durante a primavera de 2016, Sánchez e Rivera chegaram a um acordo de governo para apoiar a investidura do líder do PSOE, algo que apanhou de surpresa todos os restantes partidos. Tivesse sido aprovado na assembleia legislativa, o governo PSOE-Cs teria demonstrado o poder de influência dos liberais ao centro, ao remover o centro-esquerda da dependência do apoio da extrema-esquerda e — num eventual futuro — remover o centro-direita de depender dum apoio da extrema-direita para governar. O falhanço da posse do novo governo não foi, ainda assim, visto como negativo pelos eleitores do Cuidadanos, pelo contrário.

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Foi neste contexto, da afirmação ao centro, da congregação sem espinhas das liberdades económicas, liberdades políticas e liberdades sociais, assentando numa plataforma de desburocratização, combate à corrupção no aparelho do Estado, simplificação administrativa e uma participação ativa na defesa da progressão nos direitos individuais (o Cuidadanos foi o único partido espanhol a prever no seu programa eleitoral, em inícios de 2019, a defesa da legalização e regulamentação da gestação por barriga de aluguer), que o Cs chegou a intenções de voto de mais de 30%. Durante largas semanas, entre os finais de 2018 e inícios de 2019, foi o partido líder nas sondagens e acabou com uma votação nas urnas em abril de 2019 de 16%, apenas a 200 000 votos do PP – um dos grandes partidos do bipartidarismo espanhol. Uma das maiores histórias de sucesso eleitoral na democracia moderna espanhola.

A maré mudou nesse preciso momento. Não porque a estratégia de impor-se entre o PSOE e o PP — os equivalentes ao PS e PSD em Portugal – fosse errada, mas porque Albert Rivera a abandonou. No rescaldo das eleições de abril de 2019, como terceira força política e king-maker de coligações, o líder do Cuidadanos recusou apoiar o partido vencedor da eleição (PSOE), fazendo uso do poder negocial da sua posição para impor uma agenda liberal ao partido social-democrata espanhol e retirar o país da crise governativa que vivia desde 2015. Este foi o início do fim do sucesso do Cs e do preenchimento do centro político em Espanha.

Com uma viragem brusca para a direita, Rivera foi atrás do Partido Popular, contando tornar-se na segunda força política do país e o principal partido do centro-direita e da direita espanhola. As ambições pessoais do líder do Cs levaram a que tivesse recusado integrar — ou até apenas dar suporte parlamentar — ao governo do partido mais votado, esperando que a manutenção da crise política precipitasse novas eleições (as quartas em quatro anos) onde iria almejar a vitória eleitoral e a posição de presidente do governo — o cargo equivalente ao de primeiro-ministro em Portugal.

Só no outono de 2019, e depois de múltiplas pressões internas de membros destacados do partido — como Luís Garicano, líder da bancada parlamentar do Cs no Parlamento Europeu — Rivera se sentou à mesa com Sánchez. Por esta altura, qualquer possibilidade de ter uma maioria governativa com confiança de ambos estava profundamente erodida, e as novas eleições foram inevitáveis. Inevitável também, foi a espiral de degradação em que o partido liberal entrou, da qual a nova líder Inés Arrimadas ainda não conseguiu tirar o Cs, mesmo depois do recentramento político. A confiança do eleitorado centrista no Cuidadanos morreu.

Quando o Ciudadanos abandonou o centro e foi disputar um eleitorado conservador e de direita, virando as costas ao seu natural eleitorado moderadamente progressista e de centro, cavou a sua própria sepultura. Entre o original (PP e Vox) e a cópia (Cs), o eleitorado da direita espanhola escolheu o original. O Vox — partido irmão do Chega — foi o grande vencedor da segunda eleição de 2019, enquanto os liberais colapsaram. Abandonaram o centro, e os centristas abandonaram-nos.

É verdade que o Vox não é verdadeiramente equiparável ao Chega, que o PP não é igual ao PSD (antes um híbrido PSD/PPD e CDS-PP), que o Podemos teve um poder de influência que o Bloco de Esquerda nunca teve nem tão cedo terá, e que o PSOE não é o PS. Também é verdade que o PS (ou o PSOE) que governa ligado a BE e PCP (ou Podemos) não é igual ao PS (ou PSOE) em governação sozinha ou com influência liberal. A IL também não teve (ainda, espero), o salto eleitoral e popular que o Cs viveu entre 2015 e 2019. E há, apesar disto, demasiados paralelismos entre a situação dos dois partidos para não o ler como um aviso.

Há, em Portugal, quem faça pressões para que se repita a história do Ciudadanos em Espanha com a Iniciativa Liberal em Portugal. Se há coisa que os liberais portugueses têm que aprender com os irmãos ibéricos, é que o abandono do centro político não só reforça o bipartidarismo, como é um verdadeiro tiro nos próprios pés. O centro não é um espaço vazio, terra de ninguém ou cemitério político. É precisamente do seu não-preenchimento que resulta o potencial para quem o quiser ocupar. Mais do que o posicionamento numa falsa dicotomia desajustada ao século XXI, os eleitores valorizam a ponderação, a escolhas das melhores políticas baseadas na evidência — sejam elas ditas de esquerda ou de direita, o que quer que isso signifique — e a capacidade de governar.

A construção dum projeto político liberal não pode traçar linhas vermelhas com partidos social-democratas ou democratas-cristãos, tão somente com partidos extremistas à direita e à esquerda, e com políticas extremistas em qualquer lugar do espectro. Tem que ter a capacidade de adaptação a cada momento político, construindo as pontes com quem mais for capaz de executar um projeto governativo sólido, de futuro e com pendor liberal (ou no mínimo liberalizante). Só uma oferta que conjugue no centro o melhor da direita e da esquerda e que promova todas as liberdades sem pudores, sem subterfúgios e sem pruridos pode vingar.

A fuga para o centro-direita ou, pior, para a direita política é um ato de suicídio particularmente incompreensível quando temos, à distância duma fronteira, o resultado dessa fuga dos liberais do centro: o crescimento do socialistas e social-democratas à custa do centro, e o colapso liberal à custa do crescimento dos conservadores mais ou menos radicais. O mesmo aconteceria numa fuga para o centro-esquerda ou, pior, para a esquerda. O projeto da liberdade será sempre incompleto e infrutífero enquanto não o for por inteiro.

Por tudo isto, o lugar da Iniciativa Liberal é ao centro do panorama político português. Sim, os liberais são mais conhecidos por propostas de liberdades económicas como a privatização da TAP, a proposta de flat tax de IRS ou um programa geral de desburocratização e redução fiscal. Mas estas propostas constituem uma fração minoritária do programa de 600 páginas às Eleições Legislativas de 30 de janeiro. Também na ação parlamentar da legislatura terminada (de outubro de 2019 a novembro de 2021), a IL apresentou um muito maior número de iniciativas em áreas quer sociais quer económicas, particularmente na Saúde e Educação.

No novo ciclo político, que será provavelmente o mais longo da democracia, os liberais participarão ativamente em projetos de liberdades sociais — como são o da descriminalização da eutanásia (dando continuidade à legalização e liberalização da produção, venda e consumo de drogas leves e ao início da discussão pública sobre a regulamentação do trabalho sexual). A proposta de nova Lei de Bases da Saúde que a Iniciativa Liberal levará avante é também um marco relevante nas políticas sociais do partido, constituindo uma das maiores reformas estruturais propostas por um partido fora do “arco da governação” na história democrática nacional.

Também no campo das Infraestruturas, o Plano Ferroviário proposto no programa legislativo dos liberais é, provavelmente, um dos mais extensos e detalhados em Portugal — não só a nível de programas eleitorais, em que terá sido, efetivamente, inédito — mas também no que concerne a documentos públicos da respetiva tutela de diversos governos das últimas décadas.

A questão ambiental também não é esquecida nem negligenciada, adensando um conjunto de propostas já presentes no anterior compromisso eleitoral às Eleições Legislativas de 2019, procurando encontrar a simbiose entre crescimento económico e sustentabilidade ambiental — o liberalismo verde ainda tão incipiente em Portugal.

Por todas estas e muito mais prioridades, propostas e ações da Iniciativa Liberal (saúde mental, direitos das grávidas, liberdade de escolha na educação, agricultura, reforma da justiça, combate à corrupção), não é possível dizer com seriedade que a IL seja, ou deva ser, um partido de direita. Pelo menos enquanto a direita em Portugal se mantiver sinónimo de liberdades económicas pífias e tacanhice retrógrada em liberdades sociais.

Os liberais portugueses têm, por via da Iniciativa Liberal, a oportunidade de fazer algo fenomenal: remover o PSD da influência e dependência da direita reacionária e da extrema-direita para governar, remover o PS da área de influência dos falsos social-democratas do Bloco e dos únicos comunistas com poder de influência governativa na Europa. E, sobretudo, fazer afirmar as ideias liberais num país que a elas sempre foi hostil e no qual o Liberalismo nunca fez escola até recentemente.

Olhemos para onde os nossos vizinhos falharam e façamos melhor. Esta é uma oportunidade para demonstrar que o Liberalismo é de centro, funciona e faz falta a Portugal.