Conta-se que um jornalista perguntou a São João Paulo II se era ‘pro life’ ou ‘pro choice’. Como é sabido, enquanto os primeiros defendem a vida humana desde o princípio, os últimos são a favor do aborto provocado. A pergunta era, decerto, desnecessária: São João Paulo II, sendo não só Papa como santo e um campeão dos direitos da pessoa, no seu país e no mundo inteiro, só poderia ser, obviamente, ‘pro life’! Contudo, para grande espanto do jornalista, o Papa polaco respondeu que era … ‘pro choice’!
A surpreendente resposta de Karol Wojtyla serve para recordar que não há disciplina de voto para os católicos. A Doutrina Social da Igreja não se pode confundir com nenhum partido político e Jesus Cristo não é de esquerda, nem de direita. A fé não pode ser instrumentalizada a favor de nenhuma ideologia política, mesmo que se assuma cristã, nem pode haver um ‘voto católico’: aos fiéis deve ser respeitada a liberdade essencial de se absterem, se assim o entenderem, ou de votarem, em branco ou em quem, em consciência, entenderem, desde que o façam sem contradição com os princípios da sua fé.
Se é verdade que as designações de esquerda e direita não fazem sentido em relação à fé cristã, há contudo parâmetros objectivos – como a dignidade da pessoa, a defesa da vida humana, o bem comum, a solidariedade social, a opção preferencial pelos pobres, o respeito pelos migrantes, o cuidado pela casa comum, etc. – que, à hora de votar, os católicos não podem ignorar.
Ou seja, nenhum fiel coerente deve votar em partidos, de direita ou esquerda, que sejam contrários aos princípios humanistas do personalismo cristão. Trocado por miúdos, quer isto dizer que o católico deve votar em função da atitude dos partidos em relação aos princípios da dignidade humana, do bem comum e da justiça social. Havendo conflito entre estes valores – pense-se, por exemplo, num programa político solidário para com os pobres, mas pró-aborto e pró-eutanásia – há que dar prioridade ao respeito pela vida humana, base e fundamento da justiça social.
O critério da vida humana, ao contrário das categorias relativistas de esquerda e direita, é de fácil aplicação em actos eleitorais. Qualquer católico, que queira ter um comportamento político coerente com a sua fé, sabe que não pode votar num partido político que defenda a eutanásia ou o aborto, precisamente porque, tanto a ‘interrupção voluntária da gravidez’, como o não menos eufemístico ‘direito a uma morte digna’, atentam contra o fundamento do humanismo cristão: o respeito pela vida humana, desde a concepção e até à morte natural. Se todos os partidos fossem contra a vida humana, no seu começo ou no seu termo natural, o fiel católico, sem ceder nos seus princípios, poderia optar pelo mal menor que, nesse caso, poderia tolerar, mas não querer positivamente.
Os defensores do aborto e da eutanásia não centram o debate no direito à vida –para evitarem a sempre incómoda referência à morte provocada ao ser humano que ainda não nasceu, ou que se encontra em grande sofrimento – mas na liberdade, nomeadamente da mulher gestante, ou do enfermo terminal. Como o âmbito emocional é sempre esquivo às razões da razão, é assim mais fácil manipular, emocionalmente, a opinião pública.
De facto, colocada a questão da vida no contexto de uma situação extrema, parece que só alguém insensível defenderia, nessas circunstâncias, a criminalização do desrespeito desse princípio. Quem se atreveria, com efeito, a encarcerar uma pobre rapariga que, violada por um demente, grávida de uma criança deficiente e expulsa de casa pusesse termo, num acesso de pânico, à sua gravidez?! Quem exigiria ao doente, cuja vida terrena está prestes a terminar, que sofra estoicamente tudo o que pode ainda padecer, só pelo prurido moralista de não lhe proporcionar a possibilidade de evitar esse sofrimento, aparentemente cruel e inútil?!
Seria também profundamente desumano condenar uma mãe, ou pai, que furtam alimentos, para os dar ao filho esfomeado. Mas, não obstante, ninguém ousa – por referência a casos marginais – defender a despenalização do furto, ou do roubo… Porquê? Precisamente porque o direito não pode ser pensado em função da emoção que situações particulares concitam, mas à luz dos princípios que devem reger a vida social.
Em Portugal, nem todos partidos de esquerda são favoráveis ao aborto e à eutanásia, como também nem todos os partidos de direita são pela vida. Com efeito, o PCP é contra a eutanásia, que o actual líder do PSD defende, tendo já declarado publicamente que, no novo parlamento, o seu partido, aliás como o PS, não vai defender a vida (Público, 24-9-19, pág. 12). Votar nestes dois partidos será, portanto, previsivelmente, um voto a favor da eutanásia. O mesmo se diga, por maioria de razão, do Bloco de Esquerda e do PAN, que são pela legalização do suicídio e do denominado ‘homicídio a pedido’. A esquerda, em geral, não só não defende a vida, como é contra a liberdade educativa, porque pretende outorgar ao Estado o monopólio do ensino e impor, em todas as escolas, a anticientífica e inconstitucional ideologia de género.
Os católicos portugueses podem ser de esquerda ou de direita, monárquicos ou republicanos, centralistas ou regionalistas, conservadores, liberais ou progressistas, mas não podem deixar de ser pela dignidade da pessoa humana, pelo direito à vida desde a concepção e até à morte natural, pelo bem comum, pela justiça e solidariedade social. Não se pode ser católico e ser pró-aborto, ou pró-eutanásia, ou pró-pedofilia, ou pró-eugenismo, ou pró-racismo, ou pró-ideologia de género. A cada fiel compete escolher, com liberdade, a opção política que, segundo a sua consciência, melhor defende os valores cristãos, que são irrenunciáveis para um católico coerente. Não compete à Igreja, nem aos seus ministros, dar indicações de voto, mas proporcionar aos fiéis os elementos de análise necessários para que exerçam, livre e conscientemente, esse seu dever cívico.
Ante a surpresa, senão mesmo escândalo, causado pela sua resposta, São João Paulo II, com aquela audácia e sentido de humor que caracterizam os santos, esclareceu que era ‘pro choice’, porque era ‘pro good choice’! Um cristão é, obrigatoriamente, pró-liberdade, pró-vida, pró-justiça social, pró-solidariedade. Pode ser também ‘pro choice’? Sim, claro, desde que seja, como São João Paulo II, ‘pro good choice’!