Se não pudermos sacar algum divertimento da dor dos outros, para que é que aqui andamos? Claro que para isto funcionar de um modo minimamente civilizado, e portanto não ser apenas uma demonstração de crueldade, convém passar algum tempo. O tipo de divertimento aceitável a partir da dor dos outros parece vir convenientemente qualificado pela passagem substancial desse mesmo tempo. Rir-me de alguém que acabou de cair é sinistro; rir-me de alguém que caiu há duzentos anos parece ser até saudável. Talvez também fosse isto que estava envolvido naquela velha ideia de o tempo curar tudo. Com o tempo a passar, lidar com as maiores aflições pode dar saúde.
No fundo, também é isto que está em causa numa invenção recente em Lisboa chamada “Quake”. Eu e a minha família fomos durante uma hora e pouco experimentá-la ali mesmo ao lado do Museu dos Coches em Belém. Trata-se de um tipo de exposição da catástrofe que foi o terramoto de 1755. Mas é uma exposição que, de certo modo, nos envolve jogando com todo o ambiente que estaria em causa naquela data fatídica. Como vos posso aliciar para irem ao “Quake” evitando o agora pecado imperdoável dos spoilers? Digamos que, conhecendo melhor a tragédia que foi aquele dia terrível, a pessoa pode divertir-se. Sim, nesse sentido, retomo a tese do primeiro parágrafo: a dor dos outros, não somente impressionar-nos-á, como também será o pretexto para algum momentos de divertimento único. E mais não detalho.
Quando saí do “Quake” não me senti culpado pelo terramoto ter inspirado uma tarde lúdica à Família Cavaco. De facto, o que mais mexeu comigo não foram as propriedades flexibilíssimas do tempo, alquimista de dor em divertimento; mexeu comigo a nossa urgência actual de, passando por sofrimentos colectivos, os imputarmos à nossa culpa. Sendo eu um pregador do Evangelho, não deveria celebrar alguma capacidade de assumirmos a responsabilidade pelo mal que nos cerca? Sim, mas não me parece ser isso que está em causa. Tento explicar melhor: na exposição “Quake” olha-se com estranheza para o tempo em que Deus podia ser culpado por uma tragédia natural—como se associar o alegado Criador ao mal que nos acontecesse pertencesse a um estágio primitivo da evolução humana. Hoje Deus já não recebe essas culpas mas não é porque passámos a achá-lo inocente; é porque temos quase a certeza de que ele é inexistente.
E é aqui que está um curioso problema contemporâneo: estando Deus livre de ser culpado pelos males que nos acontecem por aparente inexistência da sua parte, quem sobra para culpar? Quem arranjamos nós hoje para substituir Deus? Quem arranjamos nós hoje para ser a origem da parte mais substancial das tragédias colectivas? Nós, claro está. Nós, as pessoas, estamos no lugar de Deus. Se algo correr mal a uma escala severa, nós seremos os presumíveis culpados. E essa foi também a insinuação que a exposição “Quake” deixou sobre a minha má consciência: o que ando eu a fazer para evitar o próximo e inevitável tremor de terra que voltará a arrasar Lisboa? Portanto, e se quiser ser mais específico, mesmo que corra o risco de dar um spoiler, devo reformular o apelo que fiz para visitarem a exposição: com o “Quake” a pessoa diverte-se a partir da dor dos antigos mas provavelmente sai já carregada com a dos futuros.
É neste sentido que tenho saudades de um tempo em que podíamos culpar Deus. E isto não significa qualquer perda de cristianismo da minha parte. Poder culpar Deus é uma parte fundamental de lutar com ele. E só quem luta com Deus pode ser vencido pelo seu amor. Uma das maiores desesperanças que vou vendo acontecer é as pessoas sofrerem sem lhes passar pela cabeça culpar Deus. É que quem sofre culpando Deus tenta alguma modalidade de ajuste de contas com aquele que, nessa matéria, só pode ser justo. Mas tentar ajustes de contas com a humanidade é ter de ganhar fé em quem, vez após vez, demonstra ser pouco dado a justiças. Acusar Deus pela culpa que ele não tem tem, pelo menos, o mérito de nessa confusão podermos descobrir alguma em nós—na Bíblia isso passa a vida a acontecer.
Também é por estas razões que tenho os teólogos que inocentam Deus das catástrofes naturais como mais insuportáveis do que os ateus militantes. É preferível o erro de atribuir culpa a um Deus perfeito à presunção de inocência de uma divindade que, diante do mal que nos acontece, permanece um espectador de mãos limpas. Se Deus não puder sujar as mãos na nossa desgraça, quem vai? Aliás, o que é a história de Cristo se não a de Deus a ser misturado no negócio de arcar com crimes que não cometeu? A cruz é um momento de esperança porque foi uma ocasião em que a nossa mania de culpar inocentes caiu finalmente sobre aquele que tinha a capacidade de resolver o assunto. O calvário foi a pior tragédia e foi a melhor vitória: é este o paradoxo que faz dos cristãos pessoas que, não negando tragédias, sabem que delas podem nascer triunfos. Seguro é: não afastes Deus do pior que te acontece.
Quando estamos certos de que o mundo vai acabar e a culpa é nossa talvez o que esteja em causa não seja a humildade. Talvez seja apenas um sinal de, tendo nós esvaziado Deus da sua omnipotência, nos termos achado no seu lugar. E não será isto uma prova de arrogância, afinal? Torturamos sucessivamente a consciência uns dos outros sempre que abancamos no trono celeste.