Não é preciso ser muito inteligente para entender que o vento não sopra de feição para os dogmáticos. Gente cheia de certezas passa por gente ignorante e a ignorância louvada não é essa. Há um tipo de ignorância louvada, de facto. Mas essa ignorância louvada é aquela atribuída a Sócrates no célebre “só sei que nada sei”. Isto significa que há dois tipos de gente ignorante: há os ignorantes porque acreditam que podem saber coisas, e esses são os ignorantes que mais fácil e publicamente podem ser desprezados; e há os ignorantes que duvidam que possam saber coisas, e esses são os ignorantes que mais fácil e publicamente podem ser louvados. A pessoa que julga que sabe é ignorante da forma má. A pessoa que sabe que não sabe nada é ignorante da forma boa. O ignorante mau e o ignorante bom, portanto.

A verdade é que, dependendo do dia, me reconheço nas duas formas de ignorância. Volta e meia sou o ignorante mau, dogmático, porque acredito mesmo nas coisas que julgo saber. E volta e meia sou o ignorante bom, céptico, porque duvido sinceramente de certezas que já tive. Acho que não é saudável para ninguém viver exclusivamente num deste tipos de ignorância. Aconselho até, a bem de alguma diversidade, que reconheçamos que sabemos saltitar entre uma ignorância e outra. Mas deparo-me com uma proibição crescente do primeiro tipo de ignorância. Sinto que há quem queira ver interdita a primeira forma de ignorância, aquela dogmática em que a pessoa julga mesmo saber alguma coisa. Como se se impusesse uma regra estranhamente absoluta: só é possível saber-se que nada se sabe. Assim, por decreto.

Este louvor precipitado da ignorância boa, aquela que pertence ao céptico glorificado, frequentemente me parece tão rude quanto ridículo. Este louvor da ignorância boa adora também em forma de feitiços e abracadabras. Por exemplo, estes ignorantes bons repetidamente dizem coisas como: “não estou aqui para dar respostas mas apenas para fazer perguntas”, como se o poder de fazer perguntas não pudesse ter uma arrogância tão grande como o de assegurar respostas. Ou seja, outra simplificação é imposta: perguntar é típico do ignorante bom, ao passo que responder é típico do ignorante mau. É nesta dinâmica que se consagra o poder contemporâneo do perguntador. O perguntador é o novo visionário porque o que de mais nítido se pode ver é que não há respostas. O único oxigénio a respirar é o das perguntas.

Famintos que somos de novos arrebatamentos, nasce daqui a mística do perguntador, o ignorante bom. Nós adoramos, louvamos e santificamos perguntadores. Os perguntadores são os novos místicos que, a partir da nitidez que encontram em não haver respostas, iluminam as trevas que nos rodeiam de cada vez que sucumbimos à tentação de julgar tê-las. Os perguntadores são os nossos oráculos de cada vez que a bruma do nosso dogmatismo nos atrapalha sugerindo-nos que podemos saber alguma coisa. Estes oráculos que os perguntadores são restituem-nos ao nosso verdadeiro lugar que é o de aceitar que apenas podemos tatear no nosso desconhecimento. Os perguntadores, não somente sabendo que respostas não nos são acessíveis, impõem-nos, com aquela sábia ignorância boa deles, as perguntas que deveríamos estar a fazer.

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Os perguntadores ensinam-nos a colocar questões cada vez melhores, cada vez mais eficazes em desmascarar a ignorância má de quem acredita haver respostas. O reconhecimento crescente dos perguntadores deve persuadir-nos do pecado fatal de ser afirmativo. Nem todas as ignorâncias são boas, recordemos, e a primeira, a má, que acredita em respostas, deve ser um projecto abandonado à medida que a ignorância boa, a que sabe não ser possível saber, avança. No fundo, e apesar de haver alguma cautela para que a linguagem da ignorância boa não soe religiosa, ser um perguntador é uma bem-aventurança. Não é só o facto de o ignorante mau, o que acredita no que julga saber, estar enganado: ele é proprietário de uma vida má também. O ignorante bom, o que sabe não ser possível saber, não só não tem uma compreensão má como tem uma vida boa.

Mas dá-se o caso de que cada vez menos acredito nestes perguntadores. Porquê? Porque os perguntadores, os ignorantes bons, tendem a ser altamente selectivos com uso da humildade epistemológica, sua virtude máxima. Na desconfiança constante das respostas dos outros, os perguntadores acarinham as perguntas que são as deles. Aquele excesso notável de reverência que os respondedores praticavam com as suas respostas, praticam agora os perguntadores com as suas perguntas. Se podemos admitir que o mundo está cheio de respostas estúpidas, de facto, não façamos tão ligeiramente das perguntas do perguntador o seu antídoto. O perguntador não aboliu o privilégio que antes era do respondedor; apenas tomou-o para si. O dogma passou das respostas para as perguntas mas ainda continua a ser dogma: os que antes dominavam pelo muito que afirmavam são os que agora dominam pelo que muito perguntam.

Claro que há sempre modos de ignorância inferiores preferíveis a modos de ignorância superiores. E pelos seus modos os conhecereis, de facto, sejamos nós ignorantes dos maus ou dos bons. Mas têm sido poucos os perguntadores que conheço que praticam cepticismo com as perguntas que fazem. Pelo contrário, encontro perguntadores emplumados em questões contínuas como quem orientou, em dilemas de grau variável de sinceridade, um escudo para uma existência realmente absurda ao ponto de, volta e meia, nos poder surpreender com respostas. Que cepticismo nos salvará quando dermos por nós acreditando sinceramente no que julgamos saber? Espero que haja perdão para ignorantes maus destes, num mundo que já resolveu amnistiar os bons.