A questão da legalização do aborto volta a estar na ordem do dia, como tem sucedido desde há várias décadas. Parece, porém, que agora se pretende torná-la indiscutível, como se essa legalização fosse uma irreversível conquista da civilização e que quem a ela se oponha fosse um extremista infrequentável. Um político que se atreva a falar do assunto nesses termos corre o risco de ser “crucificado” pelos outros políticos e pela comunicação social.
Já não se discute o princípio da legalização. Alguns – esses sim, verdadeiramente extremistas – pretendem (algo de que ninguém falava quando a questão começou a ser discutida, quando apenas se falava em descriminalização) pretendem consagrar o direito ao aborto como direito fundamental, incluindo-o no clássico catálogo dos direitos, liberdade e garantias. Nessa perspetiva, as (normalmente escassas) restrições à prática do aborto (segundo as suas causas ou os prazos de gestação do nascituro) tenderão a ser suprimidas. Outros, mais moderados, entendem que a legalização se impõe como forma de equilíbrio entre a proteção da vida do nascituro e a liberdade da mulher grávida. Os argumentos de uns e outros podem ser facilmente rebatidos, hoje como ontem.
Consagrar constitucionalmente o direito ao aborto como direito fundamental representa uma insuperável contradição quando se consagra o direito à vida (ou o princípio da inviolabilidade da vida humana, como, ainda mais categoricamente, afirma a Constituição portuguesa no seu artigo 24.º, n.º 1) como o primeiro dos direitos, raiz, condição e pressuposto de todos os outros direitos (quando se suprime a vida de uma pessoa, suprimem-se todos os seus direitos). Não pode uma Constituição consagrar ao mesmo tempo o direito à vida e o direito a suprimir uma vida. Só será possível superar essa contradição se consideramos (o que sempre foi rejeitado pelo Tribunal Constitucional português) que a vida do nascituro vítima do aborto não é vida humana protegida nos termos do referido artigo 24.º, n.º 1. Ou se considerarmos, como muitos ainda consideram, que está em causa a autodeterminação corporal da mulher, como se o embrião e o feto fossem parte do seu corpo.
Por incrível que pareça (o que revela a superficialidade com que esta questão é encarada sem hipótese de aprofundamento), essa tese ainda é invocada. Para fundamentar a sua proposta de inscrição do direito ao aborto na Constituição francesa e na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, Emanuel Macron invocou o direito da mulher a dispor do seu corpo. “O meu corpo, a minha escolha” – voltou a ouvir-se este slogan nas manifestações de apoio à deliberação das câmaras parlamentares francesas que aprovou tal proposta. Seria de esperar já definitivamente superado este argumento, tão contrário aos mais evidentes dados da ciência e da experiência comum.
Encarar o embrião e o feto como parte do corpo da mulher será como recuar às conceções do direito romano (segundo as quais, seriam parte “das vísceras da mulher”). Também na antiga Grécia se considerava que só com o nascimento se saberia se o feto era humano ou monstro (é claro que não havia, então, ecografias…). Os dados da biologia são inequívocos: a partir da conceção estamos perante um novo ser da espécie humana (obviamente não de qualquer outra espécie animal), com um património genético próprio (único e irrepetível, distinto da mãe e do pai), dotado de capacidade de evoluir, conservando sempre a mesma identidade (é sempre o mesmo até à idade adulta e à morte), através de um processo autónomo e coordenado, sem qualquer quebra de continuidade, de acordo com uma finalidade presente desde o início (um processo sumamente organizado e inteligente, pois, muito longe de um simples amontoado de células). No fundo, o embrião é aquilo que cada um de nós já foi e nenhum de nós teria atingido a fase da vida que hoje atravessa se não tivesse passado por essa fase inicial, ou se tivesse sido impedido nessa fase tal processo de evolução natural.
Dir-se-á que esta é uma visão que não é consensual (por vezes até se diz, sem qualquer fundamento, que se trata de uma visão religiosa) e que a ordem jurídica deve respeitar o pluralismo de conceções sobre o início da vida humana presentes nas sociedades de hoje. No entanto, com a legalização do aborto (e mais ainda quando afirma o aborto como direito fundamental) a ordem jurídica não é neutra, faz uma opção: considera que a vida do embrião e do feto não é merecedora de proteção nos mesmos termos em que o será a vida depois do nascimento (se não considerasse, não admitiria que pudesse ser suprimida). A neutralidade a este respeito não é possível.
Também se invoca, para justificar o direito ao aborto como direito fundamental, a autodeterminação reprodutiva da mulher. O argumento será válido quando se trate de evitar a conceção, antes da reprodução se dar, não quando já se deu a conceção e a reprodução, quando (como sucede com o aborto) se trata de suprimir a vida de um ser já concebido e em gestação.
Sem atingir esse extremo, sem considerar que a vida de um nascituro não é merecedora de qualquer proteção, há quem sustente que um regime de legalização do aborto como o que vigora entre nós e na maioria dos países europeus (em que essa legalização depende do prazo de gestação do embrião e do feto) representa um ponto de equilíbrio entre dois valores constitucionalmente tutelados: a vida do nascituro, por um lado, e a autodeterminação (ou liberdade) da mulher grávida. Esta argumentação também não é aceitável.
Em mais nenhuma situação se considera que a liberdade de alguém (não estando em causa qualquer forma de legítima defesa contra uma agressão) pode ser invocada para suprimir a vida de outrem. O peso e o relevo da liberdade nunca se equipara ao da vida de outrem.
Diz-se que nenhum direito é absoluto, que também o direito à vida está sujeito a limites, como qualquer outro direito. Mas esses limites devem salvaguardar sempre o conteúdo essencial do direito limitado (artigo 18.º, n.º 3, da Constituição portuguesa). É aceitável limitar a liberdade de expressão quando está em causa um insulto racista, por exemplo; mas esse limite não suprime a liberdade de expressão, muito sobra no campo da liberdade de expressão quando se aceita esse limite. É aceitável a limitação da liberdade de manifestação quando esta envolve a prática de violência; mas esse limite não suprime a liberdade de manifestação, muito sobra no campo da liberdade de manifestação quando se aceita esse limite. Mas tal não pode dizer-se quando se suprime uma vida humana: ninguém pode estar semi-vivo ou semi-morto, ou está vivo ou está morto. Suprimir a vida de outrem é necessariamente suprimir o conteúdo essencial do direito à vida que é assim sacrificado, e não apenas limitado.
Importa sublinhar que a vida que deve ser protegida não é um valor abstrato, é a vida de um ser humano “único e irrepetível”. Não se respeito o princípio da inviolabilidade da vida humana quando se admite essa violação em relação a certas pessoas e não em relação a outras. Aceitar essa violação em relação a algumas pessoas não se traduz numa aceitável limitação do direito à vida que não afeta o seu conteúdo essencial; é óbvio que afeta. Do mesmo modo, aceitar a violação da vida humana na sua fase inicial, nas primeiras (dez, doze, catorze ou vinte) semanas de gestação não se traduz numa aceitável limitação do direito à vida que não afeta o seu conteúdo essencial: é óbvio que afeta. De nada servirá a uma vítima de um atentado à vida na sua fase inicial a garantia de que essa vida já seria respeitada numa fase posterior da sua existência, seja ela numa fase ulterior da gestação ou depois do nascimento.
Também sei que contra toda esta argumentação se invoca o drama das mulheres “empurradas” para o aborto clandestino ou sujeitas a penas de prisão quando este é ilegal. A legalização do aborto é, pois, invocada como conquista irreversível na perspetiva dos direitos das mulheres.
Esquece esta argumentação tida por feminista que a legalização do aborto tem servido nalguns contextos culturais para a prática do aborto seletivo, do aborto motivado especificamente pelo sexo feminino do feto (deste também se poderia dizer que é “parte do corpo da mulher” e também se poderia dizer que esta é uma liberdade da mulher grávida que deve ser respeitada). Esquece que o aborto é muitas vezes (mais do que verdadeira opção da mulher) fruto da pressão do pai que não quer assumir as suas responsabilidades. Esquece os danos psíquicos que um ato tão contrário ao seu instinto maternal provoca, de uma ou de outra forma, na mulher. Esquece que ilegalização do aborto não significa necessariamente a penalização da mulher grávida (nem tudo o que é proibido é crime). Esquece que respeitar os direitos da mulher grávida não é oferecer-lhe como alternativas o aborto legal ou clandestino, como se não houvesse uma terceira opção, respeitar esses direitos é, mais do que tudo, criar condições para criar os seus filhos.
É hoje muito pouco provável ouvir políticos dizer estas coisas. Sobretudo em campanha eleitoral, terão medo de perder votos. Vêm-me à memória as “bem aventuranças do político” de que falou o Cardeal Van Thuan, que esteve muitos anos preso pelo governo comunista do Vietname e cuja causa de beatificação está em curso. Entre outras “bem aventuranças”, ele proclamou a dos políticos que são “fielmente coerentes” e a dos que “não têm medo, sobretudo da verdade”.