As mulheres merecem mais” –  esta frase tem sido proclamada com frequência em “Marchas pela Vida” que periodicamente se têm realizado entre nós. Com ela quer-se salientar como o aborto não é um bem para a mulher e que esta nunca pode ser colocada sem outras alternativas.

Agora, depois da sentença do Supremo Tribunal norte-americano que, contrariando a jurisprudência do caso Roe v. Wade , abre a possibilidade de legislações estaduais restringirem, em maior ou menor grau, a prática do aborto, ouvem-se de novo as teses dos partidários da legalização e liberalização dessa prática, que invocam os direitos da mulher à sua privacidade e à autodeterminação corporal (“my body, my choice”). Como se não estivesse em jogo a vida de outro ser humano, distinto do corpo da mulher, como uma identidade genética própria, na fase inicial e de maior vulnerabilidade dessa vida.

E argumenta-se também, de novo, que privar a mulher do acesso a essa prática legal e “segura” a empurra para uma prática clandestina e que põe em perigo a sua saúde. Como se não houvesse alternativas para além do aborto, legal ou ilegal…Como se este fosse uma fatalidade insuperável…É perante esta argumentação que se torna oportuno dizer que as mulheres merecem mais do que o aborto, seja ele clandestino ou legal.

Os movimentos “pró-vida” vêm acentuando, cada vez mais, que a sua luta contra o aborto pretende a defesa do nascituro como o mais vulnerável dos seres humanos, mas também a defesa do verdadeiro bem da mulher. «Salvemos as duas vidas» – é o mote que vem inspirando a ação desses movimentos (que foi muito ouvido na recente e grandiosa campanha contra a legalização do aborto na Argentina). Porque não podem colocar-se em oposição a vida do nascituro e a qualidade de vida da sua mãe. Fazê-lo é profundamente antinatural e, por isso, origem de traumas e sofrimentos para a mulher.

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Esta mesma postura inspira também a ação dos movimentos “pró-vida” norte-americanos nesta nova fase que se abre depois da alteração da jurisprudência do caso Roe v. Wade. Com a possível limitação do acesso ao aborto, pretende-se incrementar o apoio às mulheres com dificuldade em assumir a sua gravidez e a sua maternidade. No âmbito da Igreja Católica, ao longo destas décadas de liberalização do aborto, foram surgindo vários centros de apoio a essas mulheres: cerca de três mil centros, que apoiam cerca de meio milhão de mulheres. Quando se previa já a decisão do Supremo Tribunal, com as consequências que dela podem decorrer, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos (USCCB) lançou a campanha Wallking with the Moms in Need (“caminhando com as mães que precisam de ajuda”). Mais recentemente, o manifesto Standing with the Moms in Need (“apoiando as mães que precisam de ajuda” ) propõe-se duplicar os apoios já existentes (https://www.usccb..org/resources/statement-standing-with-moms-031522. pdf). Deste manifesto consta: «proclamamos com voz clara e unida que a nossa sociedade pode e deve proteger quer as mulheres, quer os seus filhos»; propomo-nos duplicar «a nossa advocacia em favor de leis que garantam o direito à vida das crianças não nascidas e para que a nenhuma mãe ou família faltem os recursos básicos para cuidar dos seus filhos, sem distinção de raça, idade, estatuto migratório ou qualquer outro fator».

Seria de esperar que este tipo de iniciativas recolhesse apoios alargados, mesmo entre partidários da legalização do aborto. Não tem sido assim, porém. Vários desses centros de apoio à maternidade têm sido alvo de ataques violentos e vandalismo (o que tem sucedido também com várias igrejas), como forma de protesto contra o acórdão do Supremo Tribunal que abre a porta a possíveis limitação da prática do aborto, negando que este seja um direito garantido pela Constituição. Ainda que responsáveis do campo “pro-choice” (pela legalização do aborto) condenem genericamente a violência, não se ouve o reconhecimento do mérito da ação desses centros, que, pelo contrário, é por muitos criticada. Isto porque não garantem na sua plenitude aquilo a que se chama “direitos reprodutivos” da mulher (onde, paradoxalmente, se inclui a aborto, que é, na verdade, anti-reprodutivo), Tais centros deveriam, pois, apoiar também as mulheres que queiram abortar. É claro que isso representaria uma traição aos fundamentos que estão na sua génese.

É de salientar também que a legislação de vários Estados que vem agora proibir ou limitar o aborto (na maior parte dos casos, punindo quem pratica o aborto, mas sem punir a mulher grávida sobre quem ele é praticado, o que tem o apoio da maior parte dos movimentos “pró-vida”) vem associada ao reforço de várias formas de apoio às mulheres com dificuldades em assumir a gravidez e a maternidade. Assim, por exemplo, o programa “Alternativas ao Aborto”, do Estado do Texas.

Há outros aspetos da reação ao acórdão do Supremo Tribunal norte-americano que revelam como a promoção do aborto decorre mais de um preconceito ideológico (quase “cego”) do que da busca do verdadeiro bem da mulher grávida.

Colhem aplausos as decisões de grandes empresas (a Microsoft, a Nike, a Netflix, a Disney e a Tecla) de subvencionar as despesas das suas empregadas que, para abortar, se deslocam de Estados onde a prática passa a ser proibida a outros onde tal prática continua a ser legal. Quem elogia tais decisões esquece que para essas e outras empresas é mais vantajoso, numa perspetiva puramente materialista de custo-benefício, que as suas empregadas abortem do que tenham filhos (com o que isso poderá implicar no futuro, mesmo no contexto norte-americano, onde os direitos da maternidade são bem mais reduzidos dos que os vigentes nos países europeus). Mereciam, antes, tal aplauso as decisões de empresas (como a desconhecida Buffer Insurance) que, nesta altura, apoiam as suas empregadas que optam pela maternidade. Também aqui se torna oportuno dizer que as mulheres grávidas merecem mais do que o custo da viagem para abortar.

Para tornear a proibição de abortar que poderá passar a vigorar nalguns Estados, tem-se advogado, até ao mais alto nível de responsabilidade política, o envio da pílula abortiva RU486 pelo correio para o domicílio da mulher grávida, onde ela poderá praticar o aborto sem assistência médica. Já assim se procedeu no Reino Unido durante o confinamento decorrente da pandemia. Afinal, o que é feito do cuidado com a saúde da mulher e da garantia de um aborto “seguro” porque medicamente assistido?  À saúde da mulher, sobrepõe-se, deste modo, um pretenso direito irrenunciável que deverá ser exercido a qualquer custo.

De entre as limitações ao aborto que agora se tornam possíveis, está a da legislação que proíbe o chamado aborto seletivo, isto é, o que tem por fundamento o sexo do nascituro (na grande maioria dos casos, do sexo feminino). Em coerência com o princípio de que está em jogo apenas a privacidade e autodeterminação corporal da mulher grávida (porque o nascituro não tem direitos merecedores de proteção), essas leis têm sido recusadas por partidários da legalização do aborto. De resto, sendo o aborto livre, é indiferente, e difícil de provar, a motivação (discriminatória, ou não) que possa estar na sua base.

Por estas e outras razões, continua a ser oportuno, hoje como outrora, dizer, ou gritar, como nas manifestações: «As mulheres merecem mais».