Qualquer sistema político que restrinja os direitos individuais e as liberdades civis, ainda que mantenha formalmente o pluralismo político, a liberdade de imprensa, reunião ou manifestação, só muito dificilmente poderá ser considerado uma democracia liberal.

O regime político português da II ou III República, conforme a cronologia que se queira usar, caracteriza-se por uma quase ausência de contrapoderes institucionais, não enfrenta nenhum efectivo check and balance, para além do que se circunscreve ao pluralismo partidário e reconduz inevitavelmente todo o poder para os partidos políticos. O poder judicial, habitualmente muito fraco com os fortes, é formalmente independente, mas demasiado corporativo e, no fim de contas, quem paga os salários dos magistrados é o Ministério da Justiça.

O respeito das instituições públicas pelos cidadãos é muito baixo — facto tão evidente que não carece de prova – e é devolvido pela população ao poder na mesma moeda, estando as instituições políticas e judiciais em muito baixa conta e consideração.

Se numa situação normal é este o panorama, estamos a assistir ao mesmo cenário agora agravado pelo estado de emergência, onde apesar de cumpridas as formalidades constitucionais, o exercício de todos os pequenos poderes e arbitrariedades entra em roda livre, sendo aliás cuidadosamente legislado em desfavor dos cidadãos, como veremos.

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Ao invés da incompetência verificada na gestão dos cuidados de saúde – penosamente confessada como “erros” — é na arrogância, desrespeito pelos direitos dos cidadãos e na invenção de pretextos espúrios para alardear autoridade, que o poder político se mostra especialmente competente.

Um exemplo flagrante desta quase endémica tendência persecutória dos direitos individuais, mesmo quando tal seria desnecessário, é a consagração nas medidas do estado de emergência de uma norma que permite às empresas que oferecem redes de comunicações públicas ou serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público ficarem autorizadas “a avançar com medidas de gestão de rede e de tráfego, nomeadamente de bloqueio, abrandamento, alteração, restrição ou degradação de conteúdos, relativamente a aplicações ou serviços específicos ou categorias específicas. “

Tudo isto para “preservar a integridade e segurança das redes de comunicações eletrónicas, dos serviços prestados através delas e para prevenir os efeitos de congestionamento”.

Esta liberdade de gestão da rede conferida às empresas que oferecem redes de comunicações públicas ou serviços de comunicações eletrónicas, em teoria, seria controlada “através de um registo exaustivo actualizado, transparente e auditável, identificando entidades, datas e áreas geográficas de cada caso em que sejam implementadas as limitações e ocorrência previstas”.

Ora o que se pode concluir de tudo isto? Que a amplitude dos poderes conferidos às operadoras é absolutamente discricionária; que os registos das “limitações” não são públicos nem auditáveis em tempo real e que os dados sobre a ocorrência de congestionamento não são informados aos interessados. Ou seja, são tão transparentes que de facto nem existem.

Traduzido tudo isto por linguagem corrente, o que passou a suceder é que, sem qualquer justificação pública dessa necessidade, mais de 1,5 milhões de cidadãos subscritores das plataformas de streaming, como a HBO, Netflix, AcornTV, etc., continuam a pagar as respectivas mensalidades mas encontram-se ao sabor das apetências, conveniências e vontades das operadoras, podendo aceder a esses conteúdos de modo absolutamente errático, sem qualquer aviso, para além de que os serviços de encontram “em actualização”. O que nunca está em “actualização” é conta da mensalidade, que é inevitavelmente debitada ao utente, haja serviço ou não.

No meio das tragédias e constrangimentos da pandemia pode dizer-se que esta é uma arbitrariedade menor. É sem dúvida menor. Mas delegar em entidades comerciais e sem qualquer real controle público a possibilidade de sonegar aos cidadãos o direito de serem servidos daquilo que lhe é devido porque o pagam, com invocação de vagos e inexplicados pretextos de congestionamento, é mais um exemplo flagrante da falta de respeito do governo pelos seus cidadãos. É a tal endémica arrogância que referimos no início. E, em democracia, o diabo está nos detalhes.