A bomba veio no Político, com origem numa fuga de informação de algum zeloso burocrata do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que, perturbado com a decisão em preparação, decidiu torná-la pública: o Supremo ia abolir, por maioria, a decisão que fizera do direito ao aborto um direito constitucional em todo o território americano; e o caso era de tal maneira inédito, grave e escandaloso que justificava que se quebrasse, de forma inédita, grave e escandalosa, a tradição de sigilo do Supremo Tribunal.

Nada de novo. Todos sabemos que, quando a “democracia” e os “direitos humanos” estão em perigo, ou quando a verdade, a legalidade, a legitimidade, a democraticidade ou o que seja contrariam a agenda das Esquerdas, liberais ou iliberais, quebrar as regras do jogo é plenamente justificável, ou até desejável.

Roe v. Wade

O tempo tem sido pródigo em novidades “populistas”, “ultra-conservadoras”, “nacionalistas”, enfim, “fascistas”; novidades não-alinhadas com a “marcha da História”, novidades que saem da forma e desacertam o passo, ou pior, que embargam ou até revertem as mais céleres e recentes conquistas do “Progresso”, científica e didacticamente expressas em “legislação avançada” – e isso enerva.

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E a anunciada reversão da famosa decisão Roe vs. Wade, que consagra constitucionalmente o direito ao aborto, enerva especialmente. Daí  o recurso a medidas drásticas, como a “fuga de informação”, prática inédita nos anais do Tribunal, segundo todas as fontes e jornais, do New York Times ao The American Conservative. Assim, quebrando as regras da confidencialidade, divulgou-se um documento de 98 páginas que só deveria estar pronto, aprovado e concluído em Junho, contendo uma decisão que o New York Times qualifica como “uma mudança sísmica na lei e na política americana”.

Considerando, a partir da consagração constitucional do “direito à privacidade”, o direito ao aborto como um direito consequente do direito à privacidade da mulher, Roe v Wade, julgado em 1973, é a base de legitimação, no direito constitucional norte-americano, do que quer ser agora, já não a despenalização de uma prática privada, mas a sua elevação pública a “direito fundamental”. O mesmo “direito” que Emmanuel Macron, como primeiro gesto da presidência francesa da União Europeia, quer ver consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União, aprofundando a resolução de 2013, que penaliza os que põem “obstáculos regulamentares ou práticos” ao “acesso ao aborto”, tais como “o abuso da objeção de consciência, os períodos obrigatórios de espera e o aconselhamento tendencioso”.

O debate e conflito à volta do aborto é uma das “questões fracturantes” que divide a América e a Europa neste meio século; conflito que tem vindo a adensar-se nos últimos anos, com a subjugação de grande parte dos organismos e das instituições nacionais e supranacionais à ofensiva das agendas radicais. No passado, vários juízes do Supremo Tribunal norte-americano condenaram Roe v Wade: Antonin Scalia afirmou que basear o aborto no “direito à privacidade” era, do ponto de vista jurídico, desprovido de racionalidade; e o juiz William Rehnquist evocou a 14ª Emenda à Constituição, que proíbe os Estados de privar uma pessoa da vida, liberdade e propriedade, sem o “due process of law”. Para Rehnquist, o Tribunal tinha ultrapassado e pervertido a Lei Constitucional, ao excluir as crianças por nascer da categoria de seres humanos.

Tradicionalmente, os argumentos a favor da despenalização do aborto vinham, num extremo, de uma defesa social, feminista e anti-patriarcal dos direitos das mulheres, sobretudo das mulheres condenadas à miséria do abuso e da exploração; e, noutro, da abusiva auto-defesa do capitalismo liberal radical, a braços com os custos para o Estado e para as empresas das licenças de parto das mulheres trabalhadoras. Mas hoje, com a crescente visibilidade do feto e do conhecimento científico da vida intrauterina, com a multiplicação dos processos anti-concepcionais, será a banalização do aborto subsidiável ou mesmo admissível? E, logo, a sua banalização em sociedades que mais depressa promovem a morte do que a vida, sociedades com elites hedonistas, alheadas das questões sociais e e focadas em “resgatar o planeta” e em verter lágrimas em público perante micro-ameaças a ínfimas formas de vida animal e vegetal.

Para o historiador Pierre Chaunu, em La Mémoire et le Sacré, o que hoje se quer proclamar um “direito fundamental” era “o crime absoluto contra o homem-indivíduo”. Para os crentes – cristãos, judeus, muçulmanos, hinduístas, budistas – mas também para muitos não-crentes, o aborto equivale a uma “matança dos inocentes”. De acordo com o Unborn Victims of Violence Act os nascituros são seres humanos com direito à vida, ou ainda eram, em 2004. Que se despenalize e compreenda o aborto caso a caso, é uma coisa, que se eleve a direito fundamental e se penalize quem a ele se opõe ou quem com ele não queira pactuar é outra.

Desta vez, ao mais alto nível da hierarquia judicial norte-americana, a decisão de voltar atrás na solução de há quase 50 anos parece firme e vencedora, com cinco (ou até seis) dos nove juízes do Supremo Tribunal alinhados com a reversão e com o regresso à situação anterior, em que a regulação dos direitos do nascituro e do direito ao aborto ficava ao critério dos Estados federados.

Segundo Samuel Alito, o juiz redactor do documento indevidamente divulgado: “Durante 185 anos, a partir da adopção da Constituição, cada Estado podia decidir de acordo com as opiniões dos seus cidadãos”. É este regime que, num acto revolucionário, a decisão do Tribunal – agora denunciada e tornada pública, com a clara intenção de a dificultar senão de a bloquear – pretende trazer de volta.

É evidente que a escandalosa “fuga” de informação se destina a intimidar os juízes e a gerar uma “onda de indignação” nos media, no Congresso e no próprio Executivo contra os que querem revogar o “inalienável direito”. E a indignada onda não se fez esperar: às reacções da vice-presidente Kamala Harris, da líder do Congresso Nancy Pelosi e da senadora Elisabeth Warren, juntou-se a do próprio presidente Biden (cujos níveis de impopularidade não têm precedentes), todos numa manifesta falta de respeito pela independência do Tribunal. Haverá coisa mais iliberal do que estas proclamações incendiárias, que põem descaradamente em causa o princípio da separação dos poderes?

Desinformação

Poucos dias antes desta polémica, outra medida, igualmente “liberal”, estalara nos Estados Unidos: o Department of Homeland Security, criado na presidência de George W. Bush para defender a América dos jihadistas e proteger as fronteiras do país, ia ter uma nova Direcção – a  Direcção de Desinformação (Desinformation Governance Board).

Segundo o titular da Homeland Security, Alejandro Mayorkas, destina-se o novo organismo a lutar contra a desinformação dos traficantes de pessoas e a combater as interferências russas na política interna americana. Há quem compare o novo organismo ao Ministério da Verdade, imortalizado por Orwell em 1984. A comparação, repetida por vários senadores republicanos, como Ted Cruz e Rand Paul, remete para a criação de um “estado de excepção” artificial, de um “perigo iminente para a democracia”, que os democratas querem impor perante uma sucessão de desaires políticos – a decisão do Supremo, a compra por Elon Musk do Twitter, a baixa de popularidade de Biden.

Distopias

Não é fácil escolher, entre distopias, a que melhor possa descrever o nosso tempo, Brave New World, de Huxley? 1984, de Orwell? Nós de Zamyatin? Farnheit 451, de Ray Bradbury? A dificuldade talvez nos venha de assistirmos uma mistura de todas: a Brave New World, com o domínio absoluto dos civilizados esclarecidos, o controlo e selecção dos nascimentos, as clínicas de luxo da Eutanásia e a manipulação da Ciência a favor do hedonismo de uns poucos e da escravização dos deploráveis; a 1984, com o poder dos observatórios, a manipulação da linguagem, a repressão dos que resistem e se revoltam pelo voto contra o domínio dos Grandes Irmãos do Progresso; a Nós, com o terrorismo selectivo das palavras de ordem em nome dos “bons”, o maniqueísmo tutelar e tutelado, a solidão assistida, a dissuasão da dissidência, os cortejos de adesão; a Farnheit 451, com a queima dos livros e o cancelamento da História.

Mas talvez, como na Sexta Coluna, de Robert Heinlein, da ofensiva resulte uma resistência que revolucione este “admirável mundo novo” e o seu NewSpeak, este Nós que nada tem a ver connosco.

Já estivemos mais longe.