A primeira memória que tenho da Adília Lopes é num programa do Herman José. Isto passou-se nos anos 90, creio, em que Portugal tinha uma baliza cultural em que um poste era o mencionado Herman e o outro era o Miguel Esteves Cardoso. O poste Herman era mais popular e imediatamente punha na língua do povo as melhores rábulas do humorista. O poste Miguel Esteves Cardoso era menos acessível, mais intelectualizado e oferecia alívio aos antigos excessos francófonos e de esquerda. Acertar na baliza implicava um discurso com cópula e calão (a cocaína não interessa agora). É neste contexto atravessado que uma escritora como a Adília podia aparecer no prime time — tinha palavrões e sugestões sexuais para oferecer, provavelmente a única janela de literatura que o Herman conseguia abrir. Não foi a estreia mais inspiradora mas foi assim que a conheci. Como eu não era muito mais culto do que o Herman, por aí fiquei.
Anos mais tarde, nos anos de 2000 e 2001, fiz um estágio na Sociedade Bíblica de Portugal. A SBP estava então na Rua José Estêvão, perto do Jardim Constantino, zona alargada da Estefânia. Dois pontos culturais cardeais marcavam aquele bairro: a livraria da Assírio & Alvim na Rua Passos Manuel, em baixo, e, nada mais nada menos, do que aquela senhora indecifrável com que nos cruzávamos, que era a Adília Lopes. Era indecifrável porque ou parecia meio louca ou iluminada por alguma determinação interior que fazia questão de manter opaca aos outros — não se entendia se deambulava poeticamente pelas ruas a que pertencia ou se as reclamava surda e autoritariamente para si contra a rotina sonâmbula dos restantes. Eu e o meu primo Timóteo Cavaco, à altura secretário-geral da Sociedade Bíblica, segredávamos um para o outro “olha a Adília!”, num misto de gozo e fascínio. E isto numa época em que eu não a lia.
Comecei a ler a Adília muito mais tarde, primeiro indisciplinadamente aqui e ali, ainda a empurrão da onda pós-moderna dos anos 90. Foi só nos últimos cinco anos que a li com frequência e devoção, agora rendido. Vou dar cinco exemplos do que amo na escrita dela para encher os dedos da mão e servir de homenagem, agora que Deus a chamou para si.
Amo o humor da Adília. Um clássico é: “Clarice Lispector,/a senhora não devia/ter-se esquecido/de dar de comer aos peixes/andar entretida/a escrever um texto/não é desculpa/entre um peixe vivo/e um texto/escolhe-se sempre o peixe/vão-se os textos/fiquem os peixes/como disse Santo António/aos textos”.
Amo a atenção da Adília. Hoje queremos a paz dos monges com o cinismo dos devassos e a fé disfarça-se de espiritualidade. Mas a Adília sabia que: “Esta não é a era da suspeita. É a era da indiferença ao paradoxo. Não sei se isto é bom ou mau. Sei que, para mim, é estranho e excitante. Mas faz medo.”
Amo como a Adília encarava os seus lapsos. Ela honrava o assunto com vontade e não com vaidade: “Eu sou a luva/e a mão/Adília e eu/quero coincidir/comigo mesma.”
Amo a simplicidade redentora da Adília: como observava a sua eterna Rua José Estêvão, os seus choupos, os doces defeitos da sua casa, e por aí fora. “A visitar os jardins de Kew em Londres há muitos anos passei por um canteiro com flora mediterrânica, senti logo o cheiro da minha terra, da minha querida terra”.
Amo a fé da Adília. Vários vídeos que dela encontramos na internet surgem ao lado do Tolentino. A partir de 2000, no livro “O regresso de Chamilly” assume o abandono da sua época marialva inicial numa espécie de conversão cristã mais autêntica: “Este meu livrinho pertence ainda a esse marialvismo (…) e por isso não gosto dele. (…) Não sei se me vou casar, se vou ter filhos. Gosto de ser casta, casada ou solteira. Cada vez dou mais razão ao Papa João Paulo II em questões de sexo. O politicamente correcto em questões de sexo é incorrecto”.
Costumava dizer que tinha duas escritoras preferidas da língua portuguesa: a Adília aqui e a Adélia (Prado) lá (no Brasil). O meu coração feminino fica agora todo lá.
Nunca me tinha metido num enterro de notáveis. Mas algo me impeliu na quinta-feira passada à Capela do Rato. Cheguei lá no fim do velório quando fecharam o caixão. Acho que não fui lá para ver nada e nada vi. No passado a Adília tinha escrito: “Não quero ser cremada, quero ser enterrada na terra e voltar a ser terra. Não me assusta ser terra”. Quando estava quase a sair cruzei-me com o Tolentino, que veio de Roma para fazer o funeral. Abraçámo-nos com saudade e ele mencionou que a ressurreição do corpo dá trabalho. “Tomé/mete a mão/na ferida/para acreditar/na vida/Jesus não sofreu/em vão/porque Tomé/volta/para vida/a acreditar/na ferida/e uma ferida/não prova nada/a ninguém/quando não há fé”. Amém.