A 14 de Abril de 1961, o recém-empossado Ministro do Ultramar reabriu o Campo do Tarrafal em Cabo Verde. Renomeado Campo do Chão Bom, para afastar fantasmas passados, o Tarrafal passou a servir primordialmente para prender Africanos envolvidos nas lutas coloniais. Os métodos de tortura mantiveram-se inalterados.
A 6 de Setembro do mesmo ano, o mesmíssimo ministro do governo liderado por António de Oliveira Salazar abolia o estatuto de indigenato, um conjunto de leis criado em 1926 que regulava os direitos e os deveres da população Africana nos territórios sobre administração Portuguesa. A mudança legislativa tinha como objectivo declarado acabar com o trabalho forçado e dotar a população indígena de direitos em linha com os dos colonizadores. De acordo com o ministro do Ultramar, as motivações para esta alteração legislativa eram consistentes com a tradição Portuguesa de a todos acolher com “igual fraternidade” e “sem violência”, sendo “necessário estabelecer um conjunto de preceitos que traduzissem a ética missionária que nos conduziu em toda a parte com fidelidade à particular maneira portuguesa de estar no Mundo.” Mais, de acordo com o mesmo ministro, “os imperativos legais destinados a proteger as populações que entravam no povo Português vieram a constituir um todo harmonioso, onde o respeito pela dignidade do homem, expressa nas formas tradicionais da propriedade, da família e das sucessões, se tornou um imperativo para todos os agentes, públicos e privados, da acção ultramarina portuguesa”.
O Ministro do Ultramar que tomou estas decisões, que contribuíram decisivamente para a capacidade de o regime autoritário e colonial de Salazar e, depois, de Caetano, resistir à descolonização até 1974, depois de uma guerra absurda onde muitos jovens Portugueses e Africanos sacrificaram a vida, chamava-se Adriano Moreira. De acordo com a história que ele próprio construiu, o fim do estatuto do indigenato terá sido da sua arquitectura, visto ter grandes preocupações com as condições de vida e de trabalho das populações Africanas e com a necessidade da modernização do regime, quiçá mesmo o seu fim.
Investigação académica mais ou menos recente, feita por diversos autores como Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro, Alexander Keese ou Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto Cruz, entre outros, questiona a centralidade do papel de Moreira no fim do estatuto do indigenato. As acções de Adriano Moreira e do Estado Novo, ao qual pertencia de corpo e alma, foram, em grande medida, tributárias de um contexto histórico específico, tanto nas colónias (onde a guerra colonial tinha começado no início do ano) como internacionalmente (no sistema das Nações Unidas). Internacionalmente, a decisão da Libéria de requerer ao Conselho de Segurança da ONU a discussão da situação em Angola coincidiu com a apresentação pelo Gana de uma queixa na Organização Internacional do Trabalho acerca das condições de trabalho nas colónias portuguesas, acções claramente articuladas com a revolta que então assolava Angola. A pressão internacional sobre o regime português, crescentemente isolado, inclusive por aliados tradicionais como os Estados Unidos, é fundamental a este respeito para compreender as alterações legislativas que pretendiam amaciar o modo como as populações Africanas eram tratadas. A historiografia sugere, assim, que as acções de Moreira foram tomadas devido às mudanças no ar do tempo e, naturalmente, seguindo estrategicamente as necessidades de defesa e continuação do regime e do império comandados por Salazar. Moreira foi apenas um instrumento na feitura das reformas. Podemos questionar-nos se, naquele contexto, mais cedo ou mais tarde, devido aos fortíssimos incentivos endógenos e exógenos, outro agente político nomeado por Salazar não teria ensaiado reformas similares.
Esta é a história fundamental de Adriano Moreira antes da democratização. Depois do 25 de Abril, o único cargo de relevo que ocupou foi o de deputado e presidente do CDS, na altura do táxi, o que, considerando o estado comatoso em que o partido se encontra hoje, não é de somenos. É certo que não foi um presidente qualquer na história do CDS. Teve um papel importante na integração e normalização da direita mais reaccionária num partido democrático. Em 1979, a AD, receosa de perder votos para o MIRN de Kaúlza de Arriaga, chamou Moreira para candidatar-se a deputado pelo distrito de Bragança. Começava, assim, a integração de Adriano Moreira no regime democrático. As elites do regime democrático cooptavam um membro da elite ministerial do Estado Novo para aplacar receios e potenciais aventuras extremistas. Um clássico que vem nos livros.
Mais tarde, a ala conservadora do CDS, liderada por Moreira, derrotou o Grupo de Ofir que puxava pelo liberalismo Europeísta na direita Portuguesa, uma tensão que, de resto, permaneceu até ao fim do CDS em Janeiro passado. Derrotado no CDS, Adriano Moreira saiu para a academia, onde, tal como Marcelo Caetano, encontrou sempre refúgio quando a política não corria bem. Na academia, criou a escola do ISCSP, onde até hoje é incensado por alunos e professores.
A reacção do país à morte de Adriano Moreira foi curiosa. Por um lado, uma parte da direita celebrou o humanista, defensor e lutador pela liberdade, como afirmou Marcelo Rebelo de Sousa no último Domingo. Por outro lado, à excepção de algumas reacções nas redes sociais, houve um silêncio incómodo à esquerda. A crescente consciência dos crimes cometidos em nome do projecto colonial Português tornam difícil louvar Adriano Moreira.
A lição mais importante a retirar de tudo isto foi a sabedoria das elites do regime democrático na incorporação parcial das elites do regime autoritário por toda a sorte de motivos. Os netos da 1ª República aprenderam que um corte radical pode, às vezes, não ser o mais benéfico para a consolidação de um regime, o que deu a Moreira a oportunidade de emergir como um símbolo de uma certa direita democrata-cristã que é importante para a democracia Portuguesa. No entanto, uma leitura atenta da historiografia, especialmente o ensaio de Manuel de Lucena num livro sobre os lugar-tenentes de Salazar, percebemos que Adriano Moreira foi um homem do Estado Novo: conservador, neocorporativo, crente pio na doutrina social da Igreja e antiliberal. A partir da década de noventa, mantendo intactos os seus valores, continuava a acreditar nas teses luso tropicalistas que propalara enquanto ministro do Ultramar, transmutadas agora ao serviço do regime democrático na centralidade do Atlântico Sul, do triângulo estratégico Lisboa-Luanda-Brasília, na CPLP e na importância da língua Portuguesa enquanto instrumento político. As continuidades das elites entre o regime autoritário e o regime democrático são bem maiores do que possa parecer, mesmo num caso de transição por ruptura como Portugal.
P.S.: Este é um texto de opinião sobre a figura pública e política de Adriano Moreira, que, por sua própria vontade e acção, fez parte de momentos fundamentais da história de Portugal nas últimas décadas. Na altura da sua morte, a dor indizível da família merece-me o maior respeito.