Não obstante todas as promessas de não alterar a Constituição da Rússia para prolongar o seu poder, Vladimir Putin deixa claro que poderá continuar no Kremlin depois de 2024. Isto, imaginem!, se o Tribunal Constitucional o permitir e o povo “apoiar”. Esta jogada do dirigente russo só é uma surpresa para aqueles que consideram que ele é um homem de palavra, e não mais um ditador na História da Rússia.
Quando em Fevereiro passado, Vladislav Surkov, ex-assessor de Putin para os assuntos da Ucrânia, sugeriu a anulação do limite de mandatos presidenciais na Rússia, o Kremlin apressou-se a demarcar dessa posição alegando que se tratava de uma “opinião pessoal”.
Porém, talvez devido à proximidade do Dia Internacional da Mulher e ao peso histórico da personagem, Putin não pôde deixar de dar ouvidos à proposta da deputada Valentina Tereshkova, a primeira mulher que realizou uma viagem espacial na história da humanidade.
Tudo pareceu muito original e nada encenado: durante a discussão das emendas a fazer à Lei Suprema na Duma Estatal (Câmara Baixa do Parlamento), a cosmonauta Tereshkova, uma espécie de santa soviética que hoje pertence ao Partido Rússia Unida, controlado por Putin, decidiu fazer a mesma sugestão, que foi aprovada pela maioria dos deputados.
“Eu sugiro a retirada do limite de mandatos presidenciais ou então incluir em um dos artigos do projeto de lei uma disposição nos termos da qual se estipule que após a entrada em vigor da Constituição renovada o actual presidente, tal como qualquer outro cidadão, tenha o direito de ser eleito para o cargo de chefe de Estado”, disse a deputada Valentina Tereshkova durante a sessão plenária da Duma de Estado.
O líder nacional-palhaço Vladimir Jirinovski aproveitou a oportunidade para propôr a dissolução antecipada da Duma Estatal, a fim de realizar novas eleições parlamentares depois da aprovação das emendas “pelo povo”.
Normalmente, o Kremlin olha para a Duma de Estado como um órgão obediente que apenas vota como é necessário ao poder. Entre a população, os deputados são vistos como meros “fantoches”, incluindo a “oposição”. Por isso, não é muito frequente ver Vladimir Putin discursar ou prestar contas perante essa câmara do Parlamento. Porém, desta vez, ele reagiu imediatamente às propostas e foi no mesmo dia conversar com os deputados. Caso nunca visto nos mais de 20 anos do reinado do “czar” Vladimir II!
Mas Vladimir Putin não podia deixar estragar a sua imagem de “defensor da legalidade e da Constituição” e entrou com “pés de veludo” ao declarar: “Sobre a proposta de remoção das restrições a qualquer pessoa, incluindo o actual Presidente (…), em princípio esta opção seria possível, mas com uma condição: o Tribunal Constitucional deve emitir uma decisão oficial a assegurar que a emenda não contradiz os princípios e as principais disposições da Constituição”.
Além disso, nesse discurso insistiu que é necessário que “a sociedade tenha garantias de que lhe será assegurada uma mudança regular de poder” e que haja “uma alternativa” a quem manda.
Como a palavra de Putin vale o que vale, a sociedade terá de aceitar as “garantias” de mudança que ele achar bem. Ora, por enquanto, ele acredita e está profundamente convencido de que “um poder presidencial forte é absolutamente necessário para o nosso país” e os russos até já sabem quem é o “garante”.
Mas deixa uma “esperança” para consolação: o poder deixará, num futuro próximo, de “ser associado a uma pessoa específica”.
Estas tiradas de Vladimir Putin trazem à memória uma anedota soviética da era de Leonid Brejnev, secretário-geral do Parido Comunista da URSS entre 1964 e 1982: existia uma palavra de ordem, “no socialismo, tudo se faz em nome do homem”, e as más línguas acrescentavam, “e nós até sabemos o nome desse homem — Brejnev!”
Esta decisão da câmara baixa não será chumbada pelo Tribunal Constitucional da Rússia, pois os juízes também têm famílias para alimentar e a separação de poderes é coisa praticamente desconhecida na “era putinista”. Por isso, o mais provável é que os russos tenham de “gostar do seu líder” até que a morte lhe bata à porta ou até que a cleptocracia encontre outro líder que permita continuar a pilhagem do país.
As emendas à Constituição já faziam prever este cenário de reforço do poder autoritário e ditatorial na Rússia. E para que tudo fique “perfeito” elas incluem a definição do casamento como uma união “entre um homem e uma mulher”, a proclamação da “fé em Deus” do povo russo, a denominação da Rússia como o Estado “sucessor da União Soviética”, a defesa da “verdade histórica” do papel dos soviéticos na Segunda Guerra Mundial e a ilegalização da cedência de território russo a qualquer país estrangeiro.
Como é habitual, as pseudo-oposições comunista e nacionalista na Duma vão engolir estas emendas e outras se for necessário, o principal é que o Kremlin não lhes corte os privilégios e deixe cair algumas migalhas da riqueza roubada.
Quanto à oposição extraparlamentar, para isso existe a polícia de choque, as detenções arbitrárias, as torturas e as pesadas penas de prisão. Quem não está contente, que se vá embora! Onde é que já ouvimos isto?