A pandemia lançou sobre todo o mundo uma espécie de maldição suspensa, misteriosa, ambígua, com comportamentos erráticos. Em consequência, as reacções dos povos e dos governantes – dos homens e mulheres da rua e das elites e até das comunidades científicas e dos encarregados de velar pela saúde pública da Humanidade – foram também ambíguas e erráticas.

Todos concordamos que houve, no passado, flagelos bem mais letais que este, que mataram mais gente e mais depressa: da velha Peste Bubónica – a que vinha com os ratos e as pulgas dos ratos e martirizou a Europa durante quatro séculos –, à Gripe Espanhola de há cem anos. E se compararmos os números da população mundial desses tempos com os de hoje, as diferenças são ainda maiores.

Num tempo de optimismo

Mas esta epidemia surgiu num tempo de optimismo quase utópico, sobretudo na Euroamérica e nalgumas terras da Ásia, em que parte das elites, e mesmo das classes médias jovens e emergentes, já se sentia livre deste tipo de más notícias e piores realidades, confiando na Ciência e na Técnica de um modo tão crédulo e absoluto como os primitivos se entregavam a oráculos e bruxas.

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Só levando em conta este optimismo instalado, esta certeza de que as sociedades modernas – rumo ao imortal Homo Deus do “profeta” Hariri, com domínio sobre a natureza das coisas e sobre a sua própria natureza – estariam blindadas contra os males da velha Humanidade, se pode entender o que se abateu sobre o coração da Europa e do mundo: o excesso de pânico, o desequilíbrio entre a imprevidência de uns governos e o fundamentalismo de outros, as falhas e os exageros constantes.

Agora que, para o bem ou para o mal, a Pandemia entrou na normalidade e sabemos que vamos ter de viver com ela “habitualmente”, mesmo que isso signifique viver perigosamente, é que nos damos conta da globalidade da ameaça, mas também dos diferentes modos como está a actuar sobre os diferentes povos e continentes.

Temos agora mais de 38 milhões de infectados e cerca de 1.100 000 mortos. A maior incidência letal é nas Américas (cerca de 600.000 mortos), depois na Europa (235.000), depois na Ásia (215.000), depois na África (39.000), e finalmente na Oceânia (1008).

Desta análise pareceria que a África seria privilegiada, mas não é assim. E não é assim porque em África – como na Europa e nas Américas, sobretudo para os muitos desfavorecidos –, os efeitos económico-sociais, as causas periféricas, ameaçam matar muito mais gente que a Covid-19. Até porque a pandemia chegou a África sobre uma situação estruturalmente muito difícil.

Neste ano de 2020, os Estados africanos tinham a pagar, em função da dívida, 44 mil milhões de dólares em capital e juros. Isto é mais do que esses Estados poderiam gastar em saúde e assistência médica.

Embora o continente registe números relativamente baixos em termos de infectados e mortos, as consequências económico-sociais da pandemia sobre uma já precária situação económica vão ser muito graves.

África: Os efeitos colaterais

A incidência directa da Covid-19 é relativamente baixa, sobretudo na África Tropical e Subtropical, por razões que temos repetidamente referido e que, sumariamente, são o calor, a juventude da população, a imunidade criada pela exposição a outras e mais graves epidemias e a falta de registos.

Mas como também já sabemos na Europa e na América, uma coisa são os efeitos directos na saúde pública, outra são os efeitos na economia e na vida social.

A África também é atingida pelas medidas de confinamento: nas grandes cidades, a precaridade de emprego faz com que quem não saia para trabalhar não coma, nem alimente a família.

Uma outra consequência da epidemia foi adiar o início da Africa Free-Trade Zone (AFLFTA), uma iniciativa em que se depositaram grandes expectativas de desenvolvimento, porque ia criar uma zona de livre concorrência com 54 países, 1300 milhões de pessoas e 3,4 triliões de dólares de valor.

Ao contrário, o PNB das principais economias da África Subsaariana – Nigéria, África do Sul e Angola – vai cair substancialmente, já que a Nigéria e Angola sofrem com a queda do petróleo, e a África do Sul é o país mais atingido pela Covid-19.

Pagar ou morrer

A queda dos preços das matérias-primas, dos hidrocarbonetos aos produtos alimentares, em mercados como Angola e a África do Sul, bem como a interrupção do Turismo, que atingiu o Ruanda, são exemplos das consequências negativas da pandemia no continente. Mas também os capitais e investimentos que se retiraram, esperando melhores dias. A acrescentar a isto, na maioria dos países da África Subsaariana, dois em cada três empregos são no sector informal, ou seja, isentos de ajudas sociais.

O entendimento geral e global para o mundo tem sido que a pandemia criou uma situação de estado de necessidade no limite da sobrevivência da própria vida civilizada e que, por isso, teria de haver medidas excepcionais no sector financeiro e económico, mesmo à custa de uma espiral de endividamento. Era preciso fazer chegar a uma economia em colapso meios de pagamento; e é o que se tem estado a fazer.

Quanto a África, os efeitos colaterais podem tornar-se apocalípticos se não houver uma rápida e responsável mobilização do mundo em relação ao problema.

Actualmente, há um relativo entendimento que, a fim de desagravar a situação económico-social e também sanitária africana, os credores internacionais devem considerar planos de perdão de dívida (capital e juros) de uns países e a dilatação de prazos de pagamento de outros.

Os credores de África são os países desenvolvidos da Euroamérica e a China.

Mas enquanto nas sete economias mais desenvolvidas do globo a média da renda per capita anda pelos 45.500 dólares, na China ela é cerca de 10.000. A China, que é um dos grandes credores da África (cerca de 20% dos créditos), está numa situação que não lhe permite grandes generosidades.

A dívida chinesa provém de empréstimos governamentais e de bancos e fornecedores a África a partir de 2000, num valor que ronda os 150 mil milhões de dólares. Países como Angola, o Quénia, a Etiópia e a Nigéria contam-se entre os principais devedores da China.

Os ministros das Finanças de África pediram, no início da crise pandémica, um pacote financeiro de alívio no valor de 100 mil milhões de dólares, dos quais uma parte seria constituída pelo perdão ou adiamento do serviço da dívida no valor de 44 mil milhões. Pediram também que uma parte da dívida dos países mais pobres fosse anulada e outra convertida em empréstimos de longo prazo e baixos juros.

Até que ponto os credores aceitarão este pedido, é o nó da questão. Sobretudo a China, detentora de uma posição substancial dos créditos sobre África.

O caso angolano

O caso de Angola é um bom exemplo: a dívida externa angolana está neste momento em cerca de 49 mil milões de dólares e as reservas do país em cerca de 10 mil milhões. Nos anos de ouro do pós-guerra e do petróleo alto, as reservas chegaram a ultrapassar os 110 mil milhões. A quebra dos preços do crude afectou o valor de uma economia que era, desde há muito, essencialmente uma petroeconomia. Desta dívida externa, a maior parte é à República Popular da China, a quem Angola deve 20 mil milhões de dólares. O segundo credor é o Reino Unido. Cada angolano (são 30 milhões) deve 1500 dólares ao exterior: 700 à China e cerca de 250 ao Reino Unido. A maior parte desta dívida é comercial, a Bancos e fornecedores vários. A ministra das Finanças, Vera Daves, espera que da renegociação da dívida no quadro do G20 e fora dele resulte uma poupança de cerca de seis mil milhões de dólares até 2023.

Desta dívida de 20 mil milhões, metade foi para a capitalização da Sonangol. Não deixa de ser curioso comparar estes números no momento em que o Presidente João Lourenço, numa nova fase da denúncia da cleptocracia e corrupção no passado próximo, venha dizer, em entrevista ao Wall Street Journal, que os desvios de valores do Erário Público terão atingido 24 mil milhões de dólares, dos quais metade foram destinados à capitalização da Sonangol.

O valor destes “desvios” significa metade da dívida externa, é maior que a dívida à China e é mais do dobro do valor das reservas do Banco Central Angolano.

Dando conta, na mesma entrevista, dos valores que foram recuperados, o Presidente falou em 4 mil milhões de dólares recuperados no país, acrescentando que mais cerca de 5,4 mil milhões poderão em breve ser recuperados no exterior – Suíça, Holanda, Portugal e Reino Unido.

Entre a recuperação dos valores desviados e a renegociação da dívida, Angola pode encontrar um substancial alívio das suas contas e recursos para prosseguir com a urgentíssima diversificação da economia.