Em julho de 2010, o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Ahmet Davutoglu, esteve em Portugal, numa conferência no Museu do Oriente. Trazia uma mensagem muito concreta, que deixou a sala incrédula. Vinha dizer que Ancara tinha mudado a fundamentalmente a sua política externa. Que de suplicante à porta da sempre indecisa União Europeia – e nem por isso menos exigente no que se referia às reformas internas turcas –, tinha passado a ser senhora do seu próprio destino. Afinal tinha um exército próprio, servia de zona tampão da Europa para o Médio Oriente, e o seu crescimento económico permitia-lhe caminhar pelo seu próprio pé.
Disse ainda Davutoglu, num tom a que muito historiadores associariam a uma “política externa neo-Otomana”, que a Turquia se preparava para diversificar os seus interesses políticos, nomeadamente em direção à Ásia, e um dia ainda seria a Europa a querer que Ancara entrasse no seu clube restrito. Amigos como dantes, disse com um sorriso, mas agora cada um seguindo o seu próprio caminho. Tinha começado um processo de afastamento do Ocidente que culminou nos bombardeamentos das tropas turcas ao enclave sírio de Afrin, sob pretexto de neutralizar o terrorismo curdo no norte da Síria. O problema é que esses mesmos terroristas são aliados dos Estados Unidos na luta contra os Estado Islâmico. Mais, há soldados americanos estacionados nesta região (ainda que não seja claro quantos) para treinar (e eventualmente armar) a milícia curda contra investidas do ISIS.
Assim, e pela primeira vez na história, dois aliados da NATO encontram-se em armas em dois lados diferentes da barricada. Se a Aliança Atlântica já estava a passar por uma fase difícil, esta pode ser a prova dos nove relativamente ao futuro da comunidade de segurança.
Como é que em tão pouco tempo histórico, a Turquia, que em 2001 quis acionar o Artigo V do Tratado do Atlântico Norte para ir em auxílio dos EUA depois dos ataques terroristas às Torres Gémeas e ao Pentágono, se transformou num estado hostil? Mais a mais, Barack Obama e Recep Tayyip Erdoğan tinham relações privilegiadas. O anterior presidente americano via no atual presidente turco um digno sucessor de Ataturk, o pai do secularismo turco, de cariz muçulmano, e pretendia fazer de Ancara um exemplo para o Médio Oriente. A resposta tem quatro vertentes: (1) houve uma mudança geopolítica profunda na região em consequência das Primaveras Árabes; (2) que precipitou uma mudança interna profunda no regime turco. (3) Simultaneamente, o facto de a política externa neo-Otomana não ter resultado levou a que a Turquia se voltasse para Oriente; e (4) fizesse a escolha estratégica de se alinhar com a Rússia de Putin. É certo que a questão curda está pendente há décadas, mas eu arriscaria dizer que se trata sobretudo de uma questão de posicionamento estratégico.
As Primaveras Árabes, que tiveram início no final de 2010, foram uma espécie de desilusão final com o Ocidente. Apesar da intervenção humanitária na Líbia, a reação inicial foi de uma certa inércia, que convenceu Erdoğan que, depois de mais de cinco décadas à porta sempre fechada da União Europeia, nada mais havia a esperar dos aliados ocidentais. O que lhe deu margem de manobra para demonstrar o que realmente sempre foi: um muçulmano devoto, pouco à vontade com a ocidentalização do seu país. Aos poucos, o líder turco foi abolindo as ideias seculares do Pai Fundador da Turquia moderna, até ser confrontado por manifestantes pro-liberalização no Parque Gezi, na Praça Takdim (2013). Rapidamente os protestos multiplicaram-se por todo o país, revoltado com as proibições continuas.
Os protestos duraram tempo suficiente para mostrar ao então primeiro-ministro que a situação se estava a tornar incomportável. Islamizar a Turquia, significava também torná-la menos democrática – uma vez que uma parte importante da população estava pronta a reagir. Assim, em 2015, optou pelo apoio de uma plataforma islâmica e conservadora, com uma base de apoio iminentemente rural, que lhe garantiu a permanência no poder, e em abril de 2017 conseguiu ver aprovado em referendo (não sem queixas de fraude e mais de 48 por cento dos eleitores contra) uma revisão constitucional que transformou a Turquia num regime presidencialista robusto. Se ganhar as próximas eleições, o que é muito provável, será um poderosíssimo presidente até 2024.
Se dúvidas restassem, a tentativa de golpe de estado de 15 de Julho de 2016, dissipou-as. O regime de Erdoğan acusou o seu rival Fethulah Gulen (exilado na Pensilvânia) e os próprios Estados Unidos de serem os autores morais do atentado contra o regime. Escusado será dizer que desde então a tolerância com as liberdades e garantias dos cidadãos reduziu-se drasticamente e que as relações com os Estados Unidos se deterioraram muito. Erdoğan resolveu usar o velho truque, já adotado por tantos líderes do Médio Oriente, de diabolizar os americanos pela sua degradação moral e pelo seu (muitas vezes inventado) comportamento subversivo.
Faltava, nesta equação, a Rússia, com a qual a Turquia também andou desentendida. Mas a degradação das relações com a Europa e os Estados Unidos, deixaram Ancara numa situação de isolamento que, neste momento histórico, apenas a Rússia estava em condições de colmatar. Assim, em 2016, Erdoğan e Putin assinaram o Acordo de Moscovo, que acabou por envolver a Turquia na Guerra da Síria. Afrin acabou por ter a dupla finalidade da contribuição turca para o esforço de guerra – nomeadamente contra o Estado Islâmico numa zona mais alargada do norte da Síria – e a contenção das milícias curdas, que há anos mantém a sua intenção de ter um estado independente (outra questão que pode ter repercussões negativas para este novo ocidente desunido e cansado, mas isso já é outra conversa). A presença americana na região, pouco parece importar à Turquia. Ou, talvez pior, os bombardeamentos a Afrin aconteceram apesar da presença americana na região. O que é muito mais grave.
Bem vistas as coisas, a administração Trump feito uso de contenção político-militar (e bem), já que os bombardeamentos podiam ser interpretados como um ataque indireto à presença de Washington na região. Mas há quatro elementos que dificilmente voltam atrás: o facto de Erdoğan se ter tornado um exemplo de líder para muitos muçulmanos (engrossando a fila de “homens fortes” que segundo Gideon Rachman, do Financial Times, despontaram durante a segunda metade da administração Obama), o facto de a Turquia ter desistido da democracia e do secularismo como elementos centrais do seu regime político, que há uma clara intenção da Ancara de voltar as costas ao Ocidente e que este confronto em Afrin é um grande rombo na NATO, cujo dique a sustém já está a rebentar pelas costuras. Quem mais sofre é a Europa; o aliado mais fraco tem sempre um caminho maior a fazer e, neste caso concreto, as opções são muito escassas.