Não caberá aqui o inventário dos reiterados erros estratégicos que foram encaminhando o Partido Socialista para uma derrota desastrosa. Aliás, seria ocioso fazê-lo, porque é exactamente como fruto da consciência que a maioria dos eleitores deles adquiriu que o desastre se explica. Mas importará lembrar aquilo em que pode resumir-se – a ideia extravagante de que o cumprimento do memorando associado ao resgate do País foi apenas uma escolha, ideologicamente determinada, da coligação no poder – e que, na origem de todos, ou de quase todos, há um facto comum que configura a sua matriz genética: a soberba intelectual e moral com que Passos Coelho foi olhado.

Na verdade, o modo como o Partido Socialista subestimou Passos Coelho, logo em Fevereiro e Março de 2010, não era inédito. Pelo contrário, prolongava o preconceito sobranceiro com que, sem sequer se dar ao trabalho de compulsar quaisquer provas ou argumentos, ou mesmo sem qualquer tentativa de juízo, racional ou outro, condenou sumariamente Cavaco Silva, demonstradamente rústico, sem “glamour” e sem polimento, por alegada força da tosca herança cultural a que estaria previsivelmente adscrito, pela sua ancestralidade de ignoto plebeu de Boliqueime. Provas ou argumentos, para quê? Não chegara, ele, ao extremo indecoroso de confundir Thomas Mann com Thomas Morus? E, assim, ao longo de mais de três décadas, o Partido Socialista se foi dispensando de perscrutar as razões do sucesso, sempre democraticamente escrutinado, do político mais consistente e repetidamente vencedor do nosso passado recente.

Permita-se-me um breve excurso quase confessional. Em 9 de Março de 2011, sabendo que desse modo tornaria meteórica a minha passagem pela ribalta da política, eu fui o deputado do Partido Socialista que, quando há minha volta se esboçava a pateada, se levantou para aplaudir de pé o discurso do Presidente da República, no acto solene da sua tomada de posse. Ainda hoje, lembrando-o minuciosamente, linha a linha, imagino que serão muito poucos os que discordarão de qualquer uma das muitas frases que o compõem. Se duvidam, leiam-no, por favor. Para além disso, o que estava em causa era, sem dúvida, a dignidade devida às instituições da democracia, razão, por si só, muito mais do que bastante. Mas, para o que então fiz, houve também “motivos tácticos”, de que não me envergonho. Questionado pelo líder da bancada parlamentar de que era parte, eu comprometera-me a fazê-lo, porque, sustentei, já não estávamos em campanha eleitoral, os votos estavam apurados e o resultado, gostássemos ou não, era definitivo: nos cinco anos seguintes Cavaco Silva seria “a bilha de ferro” e nós, o Partido Socialista, “a bilha de barro”. Reeditar o confronto, defendia eu, seria suicidário. Mas, na diletante superioridade classista, subjacente à orientação que o Partido Socialista tinha e prosseguiu, não havia espaço para o senso-comum, esmagado pela sofisticação aristocrática dos que se recusam a ver que, quando todas as vitórias assentam no consentimento maioritário, quem ganha duradouramente é quem acolhe e compreende a sagaz e judiciosa sensatês com que a sensibilidade comummente partilhada avalia a linha que passa pelo presente e liga o passado aos futuros possíveis. No núcleo dirigente do Partido Socialista, prevaleceu o preconceito. E foi-se perpetuando, a ponto de se tornar uma segunda natureza.

O menosprezo com que o Partido Socialista, inspirado pela “Fenomenologia do Ser” de José Pacheco Pereira, sentenciou Pedro Passos Coelho e tudo o que ele disse ou fez, desde a primeira hora e durante todo o tempo, tem as suas raízes na mesma cegueira ad homine com que se habituou a menosprezar Aníbal Cavaco Silva, atendo-se à mais estrita “fulanização da política”. Na campanha eleitoral que agora termina, essa desdenhosa arrogância conduziu-o à desqualificação liminar do Primeiro Ministro e à negação absoluta de tudo o que de positivo, inócuo ou menos negativo, ele fez nos últimos quatro anos. Desqualificado o adversário – foi inebriantemente exemplar a exótica reivindicação de que o pretendente ao cargo a que, pela primeira vez, se candidatava, tinha, para o seu exercício, experiência mais relevante do que a daquele que o ocupava, havia mais de quatro anos e num contexto incontroversamente adverso – parecia bastar repetir o mais conciso dos discursos que as campanhas eleitorais celebrizaram, pronunciado por Lyndon Johnson numa paradoxal situação de aperto: “Tudo o que quero dizer-vos é que somos a favor de um monte de coisas, e contra muitíssimo poucas”. A favor do Céu e da Terra. Contra o Governo. Não bastou.

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Chegámos, portanto, ao dia em que o Partido Socialista será forçado à catarse. Se as coisas forem como, apaziguado o furioso fervor das arruadas, a recuperação da lucidez poderá facultar, António Costa terá agora a derradeira oportunidade de ficar na História como aquele que, tendo precipitado o seu partido no mais profundo e obscuro dos abismos, o reconduziu à superfície e à luz, para recuperar a sua natureza primacial de partido fundador e elo articulatório do regime constitucional nascido na claridade de uma manhã que agora mal se vislumbra na lonjura da memória desvanecida. Para isso, no entanto, é necessário que, entre Cila e Caríbdis, feche resolutamente os ouvidos aos entorpecentes cantos de sereia que quase o levaram a destroçar o barco sob o seu comando, e assuma, finalmente, as suas responsabilidades, resistindo à tentação de se esquivar ao ónus inerente à condição de comandante, que ambicionou tão apaixonadamente e que, por escolha própria, exerceu tão solitariamente.

A seguir a uma campanha eleitoral, temos logo outra. Esperemos que, desta vez, António Costa não se equivoque e permita que o Partido Socialista não se entreteça nas malhas de um novo equívoco. A candidatura de Maria de Belém é um seguro de vida para o Partido Socialista. Será a partir do apoio que decida dar-lhe, e no seu decurso, que o PS poderá reconstruir a sua unidade, reencontrar o caminho que, num passado agora aparentemente esquecido, percorreu, tornando-se pedra angular da democracia portuguesa, e desimpedi-lo, ou perder irremediavelmente a sua identidade. Alea jacta est. Os dados estão lançados, mas ainda há mais jogo. É preciso saber onde se errou, perceber de onde provieram os erros cometidos, corrigi-los e evitar que se repitam. Para o jogo poder recomeçar.

Deputado do Partido Socialista na XI Legislatura