Nesta pequena porção de terra à beira-mar plantada e de beleza inigualável – com 943 quilómetros de costa e que no ano de 2043 celebrará 900 anos de soberania –, a realidade tangível combinada com um espaço político sui generis continuam hoje a dar alguma razão a Júlio César, que já sem paciência e arrependido por aqui ter posto os pés, alegadamente desabafou: “Há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar!”

É um facto histórico que foi – mais uma vez – uma grave crise que nos levou à necessidade de nos abrirmos ao mundo (séc. XIV), e a solução foi encontrada na expansão ultramarina, que aliada a condições geográficas especiais e a conhecimentos náuticos e científicos de última linha, nos incitaram a rasgar novos horizontes e a dar a conhecer ao Mundo outros e inexplorados “mundos”, mas também a acumular poder e riquezas que nunca havíamos tido e que rapidamente foram namoradas e invejadas pelas grandes potências europeias daquele período (e posteriores). Creio que seria aqui imperdoável não fazer uma referência à epopeia lusa pelos vários “impérios” ultramarinos, desenhados quer pelas nossas emblemáticas embarcações quer por gentes (e um povo) com visão, ambição e coragem inigualáveis!

Porém, infortunadamente o fado das crises não nos larga e nas últimas décadas o país (e os Portugueses) vivem e suportam crise após crise. A longa estagnação da nossa já débil economia – para não referir uma linha de convergência com a média europeia que foi interrompida na passagem milénio e que parece hoje “descartada” – continua vigente e agrava-se a cada dia que passa com a pandemia da Covid-19. Recordo, goste-se ou não, que esta foi uma pandemia para o qual não nos preparámos convenientemente (embora antecipada pela OMS em 2018, mas depois ignorada), que surgiu oficialmente a 17 novembro de 2019, em Wuhan, e só perto de quatro meses depois chega ao nosso território e onde já ceifou já mais de 17 mil vidas e contabiliza perto de 900 mil infetados. Se em abril de 2020 se falava, cá e lá fora, de um “milagre português”, o erro de querer salvar e celebrar o Natal levou-nos a um pesadelo (e tragédia) em finais de janeiro de 2021, quando atingimos máximos diários de infetados (16432) e de mortos (303), e passamos a liderar o ranking dos países com mais novos casos e novas mortes por milhão de habitantes. Mais uma vez, ninguém assumiu qualquer responsabilidade e reconheceu as imensas fragilidades do SNS, e misturada com incoerências, oportunismos e medidas ziguezagueantes (algumas inclusive de incerta constitucionalidade), até se tentou passar a culpa para o comportamento “desapropriado” dos portugueses.

Ora, qualquer cidadão minimamente esclarecido e atento ao estado e evoluir do regime – mas sobretudo àquilo que as televisões seletivamente lhe servem nesta “sociedade do espetáculo” –, percebe que algo de muito sério está a passar-se e que as fabulações por parte do poder político são cada vez mais cínicas e desavergonhadas. Para os líderes políticos e altos representantes do Estado, o importante é manter a fachada e dissimular ou evitar prestar contas, isto é, assumir responsabilidades perante qualquer problema, insucesso ou fiasco… ainda por mais se tal se traduzir em vidas perdidas ou desfeitas, mais desemprego, miséria ou novos dramas sociais, em suma, o essencial é conservar o poder (e a ordem pública), nem que para isso se sacrifique o valor (e a cultura) da transparência.

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É indesmentível que depois da crise financeira que eclodiu em 2008 nos EUA, com a falência do quarto maior banco de investimento, o Lehman Brothers – crise que depressa atravessou o Atlântico com “ondas de choque” em países como a Grécia, Irlanda, Chipre, Islândia, Espanha e Portugal, em particular no nosso sistema financeiro graças à sua elevada exposição a derivados “tóxicos’”(e em instituições como a Caixa Geral de Depósitos, BCP, BES, Banif e BPI) –, os Portugueses foram chamados a pagar os erros e devaneios de administradores e gestores (e a recapitalizar bancos), mas igualmente as omissões ou graves falhas na regulação e supervisão a nível nacional e comunitário. Desde esse singular período ficou demonstrado que exigir mais informação aos governantes é fundamental (assim como escrutinar as relações promíscuas entre o poder político e o poder financeiro), mas, como é costume, notáveis e “intocáveis” assobiaram para o lado e a culpa recaiu, mais uma vez, sobre os do costume, aqueles que até hoje honraram encargos com as ajudas do Estado à banca em mais de 21 mil milhões de euros.

Mas se esta foi a primeira crise financeira, económica e social do novo século e milénio – que estamos e vamos continuar a pagar! – nas últimas décadas os Portugueses têm assistido, suportado e providenciado um conjunto de casos (onde habitualmente sobressai o vocábulo “corrupção”) que vão saturando e corroendo a confiança dos cidadãos nos eleitos e nas instituições. Por limitação de espaço, apenas a referência a alguns dos mais mediáticos das últimas décadas: o caso “Tecnoforma”, “Bragaparques”, “Portucale”, “BPN”, “Freeport”, “Vistos Gold”, “Monte Branco”, o caso BES e a célebre “Operação Marquês”, “Banif”, as “golas antifumo”, o caso “Tancos”,  a morte de Ihor Homeniuk  e todo o caso “SEF”… e mais recentemente o  “Russian Gate”, na Câmara Municipal de Lisboa, sempre envolvendo destacados ou ilustres cidadãos, alguns deles “pessoas politicamente expostas” ou até mesmo titulares (ou ex-titulares) de cargos públicos e políticos.

Naturalmente, perguntamos: qual o efeito de tudo isto? Sem dúvida que é diverso, mas podemos talvez destacar duas ou três ideias que prevalecem no espírito dos Portugueses: a primeira é que o Estado está capturado por um conjunto de interesses e alguns partidos políticos; a segunda é que o poder político está “combinado” com o poder financeiro e vice-versa; a terceira é que a esfera de ação do Estado em Portugal é cada vez maior e o cidadão comum goza cada vez menos de liberdade e é sucessivamente chamado a pagar falhas/erros de terceiros. Foi assim bem recentemente com os cortes nos salários e pensões, e sê-lo-á, muito provavelmente, também num futuro não muito longínquo se não forem bem aproveitados os milhões da bazuca europeia na implementação do nosso Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Diante deste cenário repleto de personagens e situações simultaneamente cómicas, amargas (ou até bizarras), imorais, malandras, mentirosas, egoístas, atrevidas… mas também desprezíveis, talvez seja oportuno colocar uma última questão: alguém (ainda) aguenta tudo isto?  Fernando Ulrich, atual “chairman” do BPI, deu-nos a resposta em 2012, quando o povo aguentou a austeridade de um governo que desejou ir muito para “além da troika”: “Ai aguenta, aguenta!”.