Suponho que interessa às pessoas falar da trapalhada em que andamos todos metidos. Percebo. Também a mim me interessa e não creio, de resto, que o que vou pensando seja substancialmente diferente do que pensa a maioria das pessoas. Há questões que nos fazem facilmente perder o pé. Muitas vezes, quando almoço com amigos do PS e do PSD, e quando eles começam a entrar pelas minúcias da nossa vida política, é o que me costuma acontecer. A imaginação esgota-se-me e chega a vez de um tédio culpado: não consigo pôr-me na cabeça dos políticos de que eles estão a falar e cujas intenções desvelam de uma só penada. Sinto-me um bruto. Por estes dias, no entanto, as coisas são diferentes. Tudo é razoavelmente claro. Graças, é claro, a António Costa.

O Natal e o Ano Novo, com as demissões da secretária de Estado das Finanças e do ministro Pedro Nuno Santos, e tudo o que veio com elas, foi a mais esplêndida prova da natureza de António Costa que se podia pedir. Não que ele tenha estado particularmente visível. Pelo contrário, até não deu ao país sinal de si, excepto numa mensagem de Ano Novo publicada no Jornal de Notícias e numa conferência de imprensa de apresentação de dois novos ministros (voltarei a ambas no fim). Mas também não precisava de se mostrar. A presente crise é, por ela mesma, aquilo que se poderia chamar a prova da natureza de Costa pelos seus efeitos.

De facto, o caos no Governo revela exemplarmente um traço aparente da política de Costa: a apetência pelo informe. É nesse elemento que ele se mexe melhor, navegando sobre dobras e dobrinhas. O informe permite ocultar contradições, inclusive ideológicas, e impede que os erros se tornem demasiado salientes. Sobretudo quando quem nele reina é uma temível máquina de palavras, capaz de, falando sem parar, não responder a nada que não lhe convenha responder. O informe permite toda a espécie de jogos políticos que não necessitem de frontalidade. O equívoco é a regra, e pode sê-lo, precisamente, porque o informe, confundindo tudo, não o deixa ver enquanto tal.

A Geringonça satisfez-lhe esse apetite pelo informe. Como alguma gente dentro do PS desde logo notou, havia uma linha clara que, apesar de tudo, separava o PS do Bloco e do PC. O primeiro gesto de Costa ao perceber que tinha perdido as eleições para Passos Coelho foi esbatê-la tanto quanto possível ao ponto de ela se tornar em parte imperceptível. Em parte: anulá-la efectivamente representaria um gesto inequívoco a que certamente não estava disposto. Correu-lhe bem enquanto durou, isto é, enquanto a informidade pôde ser mantida. Mas até o informe possui limites de elasticidade. O Bloco, primeiro, e depois o PC, exigiram alguma forma. E tudo acabou. E, aparentemente, acabou bem para Costa, com uma maioria absoluta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O problema é que com a maioria absoluta vinha a obrigação da forma – e das reformas. E isso, para alguém assim, era anátema. De resto, a informidade impede que se tenham ideias políticas, entendidas como um projecto para a sociedade e não meros chavões. Por uma razão simples: as ideias políticas visam exactamente dar formas particulares à sociedade. Da cabeça dele nunca saiu, nem nunca sairá, nenhuma. Qualquer discurso seu o mostra. Suponho mesmo que o horripilam.

E veio o Natal e o Ano Novo. E, por causa das trapalhadas da TAP que ele insistiu em nos fazer pagar e do dinheiro dela recebido por uma secretária de Estado, mais uma vez os limites de elasticidade, desta vez os do Governo, viram-se testados. Pedro Nuno Santos – um homem nefasto que iniciou a ascensão à celebridade ameaçando fazer tremer as pernas aos banqueiros alemães e franceses e que desde então nunca desiludiu – aproveitou o pretexto para sair do Governo e declarar a guerra a Costa e ao subalterno Medina, contando com o apoio de uma legião de “pedronunistas” (uma expressão particularmente cómica). As hostes animaram-se e toda a gente se pergunta o que é que “o Pedro Nuno” vai fazer no futuro imediato e quando e como é que começa a guerra a sério.

Entretanto, Costa começou a reaparecer. Primeiro, na tal mensagem de Ano Novo no Jornal de Notícias, transbordando optimismo. Claro que, como de costume, o mundo está péssimo e é, mesmo para ele, impossível evitar que os seus imundos miasmas nos atinjam de alguma maneira. Mas, somando tudo, Portugal está óptimo, mesmo que algumas das manifestações desse óptimo só se revelem verdadeiramente lá para 2030 ou 2040. Cálculos seus. Dantes, havia o “socialismo num só país” de Estaline. Agora temos direito ao optimismo num só país de António Costa. O grau de negação da realidade mede-se amiúde pela quantidade de delírio produzida.

A sua segunda aparição foi numa conferência de imprensa destinada a dar conta aos portugueses da sua escolha de dois novos ministros, um dos quais o inacreditável João Galamba – aparentemente, as infra-estruturas são mal-educadas. E aqui vemos, de novo, o recurso ao informe, já que ambos são notórios “pedronunistas”. Quer dizer: Costa procura de novo, em conformidade com a sua natureza política, restaurar o magma informe no qual melhor se pode mover: confundir tudo, atenuar o melhor que pode as linhas de separação, vender a ilusão de que a informidade é o melhor dos mundos.

Tudo isto tem um único problema, um problema que faz com que discutir esta história não seja mera futilidade. É que a realidade em geral procura formas, exige formas. E as sociedades não são excepção a essa regra. Portugal vive, desde há sete anos, sob a imposição de uma informidade que Costa criou para conquistar e manter o poder. Chegará uma altura em que a situação se tornará verdadeiramente insuportável. Como uma revolução no carácter político de António Costa é quase impossível de imaginar, alguém terá de o substituir para dar alguma forma a tudo isto. Seria bom que o PSD abandonasse uma vocação excessivamente contemplativa e analítica e entrasse na conversa a sério. Porque vai ser, já é, preciso.