Ouvia-se ao longe o canto das cigarras. Sócrates e um ministro do Governo haviam sido reunidos por um amigo comum. O local era ameno e propício à reflexão. Sócrates, como de costume, iniciou a conversa.

Sócrates – Sei que tens o hábito de responder às questões sem nada temer e de forma magnífica. O teu mestre António Costa ensinou-te essa arte sublime como poucas e tornaste-te dela um consumado praticante.

Ministro – Posso, com efeito, gabar-me de muito ter aprendido com o mais hábil entre todos os hábeis.

Sócrates – E mostraste a tua versatilidade, é verdade, com proficiência. Quantas vezes, ao ouvir os teus discursos, o meu espírito se inflamou com a tua arte de persuadir os auditores da veracidade das tuas convicções e da necessidade dos outros as partilharem! Não tomarás como uma crítica, sem dúvida, que eu te diga que experimentei o mesmo sentimento de admiração quando defendias uma coisa e o seu contrário. Porque a grandeza da tua arte manifesta-se precisamente nessa capacidade de sugerir uma convicção inabalável mesmo quando cais no que aparentemente é uma contradição.

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Ministro – De modo algum, Sócrates. Tomo mesmo isso como um elogio. Seria um pobre praticante da minha arte se me limitasse a perseverar numa opinião única. Quem apreciaria o meu talento se assim fizesse? Para mais, a cada mudança de opinião a convicção ganha um novo vigor. Eu próprio me sinto rejuvenescido. Começo sempre de novo.

Sócrates – Ó ágil espírito, como te admiro! Mas não temes tu que, a cada novo nascimento, algo se perca da passada existência e uma nefasta mancha de esquecimento te perturbe as acções e as palavras?

Ministro – É um risco, Sócrates. Esqueço-me, por vezes, de palavras e acções passadas. Afasto-as de mim, sem quase dar por isso, como se elas fossem da responsabilidade de outros que não eu e nada acerca delas soubesse. Com o tempo, devo-te confessar, torna-se um hábito, quase uma segunda natureza.

Sócrates – E não sentes por vezes o secreto desejo de saber o que antes disseste e fizeste?

Ministro – Não muito. Para quê?

Sócrates – Para melhor te conheceres a ti mesmo, ó esplêndida criatura.

Ministro – Conheço-me tal como sou no presente e isso basta-me. Além de tudo, permite-me ter uma consciência docemente tranquila.

Sócrates – Mas não queres tentar comigo a experiência de te lembrares de ti mesmo?

Ministro – Se isso te dá prazer, ensina-me como o fazer.

Sócrates – Procedamos, então, à maneira dos historiadores. Não precisamos de nenhum questionário especial.

Ministro – Que queres dizer com isso?

Sócrates – Os historiadores, concordarás comigo, procuram reconstruir aquilo que se passou, verificam documentos que atestam a veracidade ou o erro daquilo que sobre o passado pensam, tentam conferir com outros as conclusões a que chegaram sobre as acções e as palavras passadas, e assim por diante.

Ministro – Deve ser uma tarefa extenuante…

Sócrates – De uma certa forma, sim. Mas, repara, é, no fundo, o que as pessoas comuns fazem ao longo da vida no que ao seu próprio passado diz respeito.

Ministro – Como assim?

Sócrates – Procuramos lembrar-nos do que fizemos e dissemos. Se a memória nos falha, buscamos documentos que comprovem que as coisas se passaram como pensamos e, para nos assegurarmos que as coisas assim foram, falamos com conhecidos que as presenciaram. É isso que nos impede de acreditarmos que escalamos os Himalaias ou que escrevemos Os Lusíadas. Os documentos e a vigilância dos outros impedir-nos-ão de sucumbir a essas persuasões no caso de a isso nos sentirmos tentados.

Ministro – Não te imaginava tão ingénuo, Sócrates. Esqueces-te que esses tais procedimentos podem ser convenientes aos historiadores e às pessoas comuns, mas, no que respeita à minha arte, não só não servem de nada como são até contrários ao seu espírito. Teria eu então de requerer a opinião dos outros sobre os meus actos e as minhas palavras? Não terei direito a uma memória inteiramente livre de qualquer vigilância? Não posso eu nascer de novo a cada dia?

Sócrates – Ó hábil homem, discípulo do mais hábil de todos, ninguém a essa memória que desejas tem direito se viver em sociedade. Mais cedo ou mais tarde alguém te mostrará um documento que prova que fizeste aquilo que agora desejarias não ter feito ou, amigo ou inimigo, testemunhará das palavras e dos actos de que pretendes agora esquecer-te. Ninguém nasce inteiramente de novo a cada dia.

Ministro – Aquilo que tu chamas memória parece-me uma maldição.

Sócrates – A memória pode ser uma maldição para qualquer um. Mas os deuses não nos permitiram viver sem ela.

Ministro – Esqueces-te, Sócrates, de todos os recursos da minha arte: vencerei a memória com o esquecimento.

Sócrates – Então, excelente homem, a memória dos outros cairá sobre ti como as Erínias, filhas da noite, e tornar-te-ás a vítima do teu próprio esquecimento. De nada a tua arte te valerá. E chegará o momento em que cada manhã que acordares será apenas a memória de um terrível dia já passado. Pensa depressa em conhecer-te a ti mesmo, à imagem das pessoas comuns, antes que estas te apareçam em sonhos com as asas de morcego das Erínias.