As audições desta semana na Comissão Parlamentar de Inquérito foram deprimentes. Infelizmente, além de desastrosas e sinistras não podemos dizer que os acontecimentos relatados sejam raros quando o PS está no governo. O ambiente político é semelhante ao do período entre 2009 e 2011, quando José Sócrates intimidava politicamente quem se lhe opunha. A forma como se chamou o SIS para recuperar um computador e a leviandade com que este agiu em nome de um hipotético interesse político fazem-nos temer pelo futuro da democracia portuguesa. Que esses acontecimentos tenham sucedido num dia 26 de Abril, apenas dão força à imagem de um regime pós-democrático em que não sabemos onde reside o poder, quem o detém e o exerce.
A usurpação do poder político é uma questão que julgávamos ultrapassada com o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Se há exercício a ser feito é este: como foi possível regredir a este ponto? O que se passa para permitirmos que o poder seja usurpado desta forma? O que é que falha para que os portugueses deixem que certas pessoas passem tantos anos ancoradas no poder, no governo, ao ponto de perderem a noção dos seus limites? A resposta é complexa, deriva da dependência financeira relativamente ao Estado, a que se soma um desinteresse generalizado pelo que é o bem comum e o interesse público, em contraponto com o que sucede nos países mais ricos da Europa. A verdade é que, 49 anos após o fim do Estado Novo, aqui estamos nós perante um atentado ao Estado de direito e às nossas liberdades fundamentais.
Escusado seria dizer que António Costa se comprometeu quando não se demarcou do que sucedeu no ministério das infra-estruturas, não demitiu o respectivo ministro, mas viu nisso uma oportunidade para afirmar a sua posição relativamente ao Presidente e impedi-lo de voltar a mencionar a dissolução da Assembleia da República. Perante um desastre político que colocava em causa as regras elementares do Estado de direito, António Costa preferiu reduzir a sua existência política a um jogo táctico de ganho imediato. Não foi a primeira vez e o que surpreende é mesmo a forma continuada como o Primeiro-Ministro o faz.
Há meses que se menciona a ida de António Costa para a Europa como uma das formas de ultrapassar o impasse que este representa para o país. Ainda este mês, Marcelo Rebelo de Sousa alimentou essa hipótese. Uma possível saída de Ursula von der Leyen para a NATO e correspondente alteração nas chefias europeias, pode justificar a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa dissolver a Assembleia da República. Ora, a possível escolha de um presidente do Conselho Europeu (cargo que também poderia vagar) não deve ser tomada como um pretexto para o país se desenvencilhar de um político tóxico. O assunto é demasiado grave e importante para isso. Os egoísmos nacionais não se devem sobrepor aos interesses europeus a esse ponto. Principalmente num momento crítico para a UE, com a guerra na Ucrânia e as tentativas de Putin para dividir a Europa. António Costa não deve ir para a Bruxelas porque Marcelo Rebelo de Sousa precisa de um pretexto para dissolver a Assembleia da República. Seria mais uma prova de leviandade que explica muito bem como é que falta de exigência política permitiu o regresso ao um sentimento de insegurança e desconforto que julgávamos ultrapassado.