Um dia o faraó do Egipto teve um sonho que o desinquietou. Sonhou que sete vacas magras iriam comer sete vacas gordas. José, que até então estava prisioneiro, desvendou o sonho, dizendo que se previam sete anos de abundância, seguidos de sete anos de seca de fome. O faraó encheu os celeiros nos anos de abundância e evitou a fome nos anos de seca. Esta é uma história milenar com uma enorme pedagogia, que explica como qualquer país, empresa ou família, deve gerir os seus recursos nos diversos ciclos económicos.
Vem isto a propósito da revolta que muitas pessoas têm em relação às cedência que António Costa faz à esquerda radical, desejando, conformados, que o PS tenha maioria absoluta para poder finalmente governar de facto. Ora, este raciocínio é profundamente errado. É errado porque os governantes não alteram ou seu perfil em função do contexto. Vejamos o que se passou com os últimos governantes.
António Guterres foi um primeiro-ministro sensível, agradável no trato, sério, procurando o consenso, com valores fortes e consolidados. Revelou-se também um governante incapaz de tomar decisões, conduzindo o país à falência política e ao pântano que ditou a sua demissão. Olhando para trás, vemos alguém que, posteriormente, confirmou este perfil, abstendo-se de assumir cargos executivos e assumindo protagonismo ao mais alto nível mundial em cargos, cuja missão é a influência e a conciliação. Mau primeiro ministro, mas excelente pessoa!
Durão Barroso assumiu funções num contexto económico e orçamental difícil. Foi o primeiro aviso que tivemos ao desnorte orçamental, não havendo ainda nessa altura consciência, em Portugal, de que a vida para além do orçamento pode ser de muito má qualidade. Revelou-se um político hábil, conseguindo governar em coligação, com lealdade institucional, conhecedor das matérias e com enorme firmeza relativamente aos grandes objetivos políticos e económicos. Este perfil foi determinante para que, enquanto presidente da Comissão Europeia, tivesse contribuído para que a Europa passasse quase ao lado da maior crise financeira das últimas décadas. 10 anos volvidos, já não se fala em desagregação da União Europeia, nem no fim do Euro. Durão Barroso, com o seu perfil maratonista, terá tido o seu papel neste resultado.
Quanto a José Sócrates, percebeu-se desde muito cedo que é uma pessoa carismática, determinada, com intuição e rasgo. Sabia-se também que era autoritário, irresponsável e que não distingue a verdade da mentira. Promoveu a desburocratizarão do estado e as energias renováveis. Como é comum nas pessoas geniais, é capaz, tanto de conduzir um desígnio nacional, como de levar o país à desgraça, por absoluta falta de escrúpulos. E assim levou o país à falência financeira!
Nos anos que se seguiram após deixar o governo, percebemos que manteve este perfil, quer pela forma como viveu, quer pelo tipo de intervenção pública que manteve e até pelos livros que (não) escreveu.
À medida que se sabe mais sobre o polvo de influências que sustentava a sua atuação e a forma como financiava a sua vida privada, não mostra um pingo de vergonha ou de arrependimento.
Já Pedro Passos Coelho mostrou desde muito cedo ser um primeiro-ministro austero, obcecado em dizer a verdade, respeitador das instituições e com uma enorme capacidade de sacrifício pessoal. Mostrou também alguma falta de flexibilidade em matérias mais sensíveis, inabilidade política e de comunicação. Após ter abandonado o governo, retomou o seu lugar de deputado até deixar a liderança do PSD e, posteriormente, adotou uma postura discreta, em termos de intervenção pública, e transparente, no que se refere à sua vida privada. Será sempre uma pessoa resikiente é que coloca os interesses do país acima dos seus.
Por fim, António Costa mostrou ser um político hábil, bom negociador, excelente comunicador e capaz de gerir pequenas alianças que sustentam a sua permanência no poder. O que podemos dizer deste perfil?
Vivemos nestes três anos um período de vacas gordas, fruto de um ciclo económico favorável e do aumento anormal de turismo por motivos conjunturais.
Era neste período de vacas gordas que se impunha a realização de reformas.
Esperava-se que na justiça se fizesse uma reforma para garantir a maior celeridade dos processos judiciais, já que este é um dos fatores que mais penaliza a competitividade do país.
Além de não se ter feito nada disso, assistimos ao retomar das tentativas de condicionamento.
Esperava-se que na saúde se preparasse caminho para enfrentar o enorme desafio inerente ao envelhecimento progressivo da população. Seria urgente o aumento da eficiência, da profissionalização, mais equilíbrio e justiça do orçamento de cada hospital, em função da população servida. Em vez disso, assistimos à redução para as 35 horas semanais e à redução do investimento para níveis inimagináveis. Além disso, ataca a gestão de hospitais em regime de PPP, apesar de apresentarem excelentes resultados operacionais e financeiros, reconhecidos por todas as entidades. Essa perseguição explica-se apenas pelo facto de a extrema esquerda não gostar da gestão privada. No Porto, adia-se o problema da ala pediátrica do São João, recusando a oferta de privados (é preferível o estado gastar dinheiro desnecessariamente do que reconhecer que há privados que promovem o bem comum) e fingindo que a obra se há-de fazer um dia com dinheiros públicos. Assume-se que a obra tem de ser feita, mas tem de ser paga pelo estado, sabendo que está escrito nas estrelas que isso nunca há-de acontecer. Entretanto, as crianças continuam os tratamentos em contentores. Impensável no tempo de Guterres!
Na educação, esperava-se uma continuação das políticas promovidas pelos últimos governos de cores distintas que têm dados resultados inegáveis. Esperava-se melhorias dos processos que facilitem a vida às pessoas e que potenciem a atractividade das universidades no plano internacional, garantindo, por exemplo, que os resultados das candidaturas fossem conhecidas em Julho. Em vez disso, atacam-se os contratos de associação (para prestar um serviço pior e mais caro), acabam-se avaliações e investe-se na cultura da ideologia de género. Inimaginável com Guterres!
Esperava-se uma solução que permita a viabilidade da Segurança Social a médio prazo. No entanto, omite-se o problema estrutural com a pequena melhoria do saldo, fruto das melhorias conjunturais no nível de emprego.
No trabalho, esperava-se que se actuasse em dois eixos. Por um lado, promover a diminuição da rigidez do mercado de trabalho que, de forma unanimemente aceite, penaliza a competitividade da economia. Por outro lado, é essencial e urgente preparar terreno para o profunda transformação que vai a ocorrer, fruto da digitalização, robótica e inteligência artificial.
A legislação não pode passar ao lado de uma transformação tão profunda e radical.
Estes dois objetivos só se conseguem com soluções de compromisso na concertarão social, já que este modelo de diálogo social foi o garante da paz social nos últimos 100 anos. Sim, nos últimos 100 anos!
Ao invés, foi promovido um retrocesso, reeditando modelos esgotados há mais de 20 anos. Tudo isto com um desrespeito nunca visto pela concertação social, impondo acordos sob ameaça e aprovando legislação sem sequer ouvir os parceiros. Impossível no tempo de Guterres!
Na economia, tropeça-se a cada passo em taxas, registos, burocracias e regimes especiais sujeitos a aprovação de uma qualquer entidade pública. Pouco provável no tempo de Sócrates!
Depois da falência política e após a falência financeira, António Costa irá levar à falência do estado social. Tudo isto afinal com que objetivo e resultado? Um bom crescimento económico comparado com o passado recente, mas poucochinho quando comparado com os restantes países europeus e sobretudo tendo em conta o nosso ponto de partida. Um bom controlo orçamental, face ao passado, mas ainda assim francamente mau, quando enquadrado no contexto absolutamente excecional que vivemos.
Se António Costa se demitiu de preparar o país para os desafios do futuro, quando tinha circunstâncias irrepetíveis para o efeito, das duas uma: ou actuou por convicção, ou actuou por necessidade. Se foi por convicção, é grave porque não conhece a pedagogia das vacas gordas e magras, revela não ter visão, nem sentido estratégico que são necessários a um primeiro ministro.
Se foi por necessidade, de forma a adiar habilmente o problema, revela não ter a determinação, nem coluna vertebral, colocando os seus interresses pessoais à frente dos interesses nacionais.
Seja como for, tal como todos os outros primeiro-ministros, António Costa não vai mudar o seu perfil de mera gestão do status quo e de não fazer reformas. O seu perfil não vai mudar, se aumentar a sua base de apoio.
Seja na oposição, seja num governo minoritário, seja ainda num governo maioritário, sabemos bem todas as coisas que podemos esperar de António Costa. Fazer reformas no tempo certo não é uma delas. Como um dia Gorbachev terá dito Honecker: “quem chega atrasado, é castigado pela vida!”
Advogado