As pestes sempre afligiram os seres humanos, principalmente desde que, com os avanços do processo de sedentarização, começámos a viver em grupos de grandes dimensões, em zonas urbanas, há alguns milhares de anos. As pestes mais mortíferas terão sido a de Atenas, em 430 a.C.; a de Justiniano, no ano 541; a Negra, de 1347; e a pneumónica, ou gripe espanhola, de 1918. Após algumas dezenas de anos de relativa acalmia, as tréguas foram inopinadamente interrompidas e este inimigo antigo e familiar ressurgiu, sob a forma do vírus SARS-CoV-2.

O termo sociedade de risco foi cunhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, em 1986. Segundo este autor, o risco pode ser definido como uma forma sistemática de lidar com os perigos e as incertezas produzidos e introduzidos pelo próprio processo de modernização. Se aceitarmos a ideia que a percepção do risco é socialmente construída, admitiremos, ipso  facto, que a sua compreensão e consciência serão entendidas de forma diferente, de acordo com o contexto histórico, social e cultural em que os fenómenos ocorrem. Simplificando e abreviando, antes da revolução industrial as catástrofes naturais caracterizam-se pela sua inevitabilidade, são genericamente atribuídas a causas sobrenaturais e assumem uma dimensão fatalista. Com o avanço do processo de industrialização, o desenvolvimento científico e tecnológico e a secularização da sociedade, a intervenção divina é praticamente excluída da percepção e o elemento fatalista é mitigado: no limite, é a própria actividade humana que começa a substituir os elementos naturais como principal causa da produção de riscos. Aqui, como em todos os outros sectores da vida social, é a própria sociedade que se autoproduz e se reproduz.

Numa perspectiva geológica, após o Holoceno o mundo terá entrado, segundo o químico holandês Paul Crutzen, prémio Nobel em 1995, numa nova era, denominada Antropoceno, que se terá iniciado quando as actividades humanas começam a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas. A nossa espécie está a deixar marcas preocupantes no” planeta azul”, como mostram, por exemplo, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera terrestre, ou os imensos depósitos de microplásticos nos oceanos, que, muito provavelmente, acabam fazendo parte das nossas refeições. Como vários cientistas têm admitido, trata-se de consequências não intencionais da actividade humana: não se pretende, conscientemente, destruir o planeta, mas isso está a ser feito. A transformação da superfície da Terra, devido ao aumento dos gases com efeito de estufa, é inegável, como confirma o relatório do IPCC, recentemente publicado. A subida do nível do mar e o derretimento de gelo são fenómenos irreversíveis, mesmo reduzindo bastante a emissão daqueles gases. Estes fenómenos são exemplos de consequências não pretendidas da acção social – efeitos perversos, efeitos emergentes, ou efeitos de agregação, na terminologia de Raymond Boudon – que é possível encontrar em várias áreas de actividade humana.

Apesar dos avanços na ciência, na tecnologia, na medicina, no saneamento e nas comunicações, esta pandemia tem-se revelado quase tão danosa quanto as do século passado. À escala mundial já foram diagnosticados 203.332.890 casos de infecção e registadas 4.303.610 mortes. A OMS acredita que a mortalidade pode estar subavaliada e ser duas ou três vezes superior aos dados oficiais. Em Portugal já se verificaram 993.000 casos de infecção e ocorreram 17 514 mortes. (todos os dados reportados a 12/08/2021). As epidemias fomentam sempre o medo e a ansiedade. Estes estados psicológicos, assim como os próprios germes, propagam-se de pessoa para pessoa. Além da morte e da doença há uma espécie de “via sacra” com o layoff, as falências, as moratórias e o desemprego, tudo se conjugando para espalhar o medo, a tristeza, o luto e a dor… Este balanço é devastador, mas os efeitos a longo prazo da Covid-19, na saúde física e mental das populações, serão bem mais difíceis de contabilizar e o apuramento final só poderá ser efectuado bastante mais tarde.

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Este vírus já provocou várias alterações no nosso modo de vida e vai continuar a fazê-lo ainda durante algum tempo. Algumas dessas alterações serão mais duradouras, enquanto outras tenderão a desaparecer, substituídas naturalmente pelas anteriores rotinas. As sociedades nacionais não são homogéneas em termos económicos, sociais e culturais e cada espaço nacional caracteriza-se pela sua heterogeneidade, agregando, em maior ou menor grau, vários segmentos, ou camadas: o tradicional e o moderno, o rural e o urbano, o povo e as elites… O que vai mudar e o que permanecerá não vai ocorrer, certamente, do mesmo modo e ao mesmo ritmo, em todos os países e regiões.

Após mais de ano e meio de pandemia, há ainda muita coisa que não sabemos, em termos biológicos, epidemiológicos, clínicos, sociais, económicos e políticos. Como as nossas próprias acções alteram o curso dos acontecimentos, só com o decurso do tempo será possível aquilatar em que medida as previsões que arriscamos se confirmam, ou não.

Quando acabará a pandemia? A pandemia não termina para todos ao mesmo tempo. As variáveis e os valores sociais desempenharão, a este propósito, um papel relevante. Para os doentes crónicos, os idosos, os mais pobres e, de um modo geral, os marginalizados, este vírus vai continuar a ser, em termos biológicos, uma ameaça, mesmo depois de a maioria da população considerar psicologicamente negligenciáveis os seus danos potenciais. O fim da pandemia – a proclamada “libertação”- não vai ser oficialmente declarado, mas será socialmente definido, no sentido em que tal acontecerá quando a grande maioria da população estiver disposta a correr o risco de ser infectada e a retomar uma vida normal. Assim, a pandemia irá acabar, mesmo que o vírus ainda esteja em circulação. A pandemia vai acabar, certamente, a curto ou médio prazo. Alguns dos seus efeitos serão duradouros, deixarão marcas que perdurarão, ao passo que outros se desvanecerão rapidamente no tempo, não deixando qualquer lastro. Como não possuímos dotes divinatórios, não faz sentido arriscar um exercício de prospectiva sobre o período pós-Covid. Limitar-nos-emos, a seguir, a fazer uma breve síntese de algumas dúvidas e incertezas que se levantam relativamente às mudanças e continuidades susceptíveis de ocorrer em alguns sectores da nossa vida social.

Quanto mais tempo  usaremos ainda a máscara? E a distância física será, em breve, totalmente negligenciada? E o hábito da lavagem das mãos irá persistir? E o retorno às formas usuais de cumprimento e de saudação, quando ocorrerá? O regresso às anteriores formas de interacção social, aos mores, será provavelmente muito rápido para a maioria da população. Os seniores e, em geral, os mais fragilizados tenderão, naturalmente, a retrair-se mais e demorarão mais tempo a readquirir a confiança necessária para retomar a vida normal. O mesmo acontecerá, muito provavelmente, em relação à presença em grandes concentrações, à utilização quotidiana de transportes públicos e, mesmo, às viagens turísticas.

A pandemia provocou uma recessão da economia à escala global e a retoma, particularmente no nosso país, vai ser demorada. São bem conhecidas as debilidades estruturais da economia portuguesa. As crises sucessivas, neste século, acentuaram as fragilidades do tecido económico e social e ampliaram o fosso que nos separa da Europa, onde nos integramos. Os dirigentes políticos são peritos na utilização da táctica, mas desprezam a estratégia. As nossas elites só o são nominalmente: anémicas, retrógradas, instaladas e conformadas, preferem, salvo raras excepções, defender e consolidar os seus privilégios, a inovar e a arriscar, projectando-se para o futuro. A concretização do PRR, propiciada pela ajuda financeira da UE, poderá representar uma derradeira oportunidade para melhorar a competitividade da economia portuguesa, fortalecer a sociedade civil e retirar o país da cauda da Europa. Infelizmente, o balanço histórico da aplicação das “bazucas” precedentes, não permite alimentar grandes esperança relativamente ao almejado sucesso futuro.

O que hoje chamamos trabalho é uma invenção da modernidade. A característica essencial do trabalho, no sentido contemporâneo do termo, é a de ser uma actividade exercida na esfera pública, a que se reconhece utilidade, sendo, a esse título, remunerada. A ideia contemporânea do trabalho só começa a aparecer com o capitalismo manufactureiro. O trabalho, princípio sobre o qual a modernidade historicamente se edificou, parece atravessar uma crise, tendo perdido, na opinião de vários cientistas sociais, a sua centralidade como principal elo organizador da vida social, tendendo a ser suplantado por outros valores.

A pandemia acelerou e intensificou algumas mutações já antes em curso na esfera do trabalho, nomeadamente a prestação das tarefas no domicílio do trabalhador. A principal dúvida que se coloca a este propósito é a de saber se, com o fim da pandemia, esta prática permanecerá, até se intensificando, porventura, ou se, pelo contrário, se regressará à situação anterior de preponderância do trabalho prestado nas instalações do empregador. O trabalho remoto está naturalmente excluído de muitas actividades, havendo frequentemente a tendência para enunciar uma espécie de regra geral, pressupondo a existência de uma correlação positiva entre trabalho qualificado e a possibilidade da sua prestação no domicílio do trabalhador. Esta correlação é, todavia, desmentida, na prática, por várias situações que a contradizem, como, por exemplo, a investigação científica e, de modo geral, todas as actividades que requerem a utilização de equipamentos sofisticados e dispendiosos. O teletrabalho suscita muitas outras questões como, por exemplo, a privacidade, a separação entre a vida profissional e a pessoal e o pagamento de despesas relativas ao aumento dos consumos domésticos. Em conexão com o trabalho remoto surgem, ainda, outros temas relevantes como o redimensionamento do espaço urbano e a reorganização da vida social nas cidades.

Tal como aconteceu com a esfera do trabalho, também na área da educação a Covid-19 obrigou à utilização da prática das aulas remotas, por longos períodos, em todos os graus de ensino. A escola cumpre o duplo papel de local de ensino, de aprendizagem e de guarda das crianças, sobretudo até à entrada no ensino secundário. A mudança para o ensino à distância diminuiu, em os todos os níveis, a qualidade das aprendizagens, mas terá afectado, sobretudo, os alunos do ensino básico, provocando, certamente, maiores danos nos mais desfavorecidos.

As aulas remotas serão um recurso inevitável em situações de emergência, mas não poderão ser consideradas uma alternativa equivalente às aulas presenciais. A interacção in situ professor-alunos e dos alunos entre si não tem equivalente no ensino à distância e a rede de relações formais e informais que se vai construindo entre todos os actores nos locais de ensino, ao longo do tempo, representa um valor incomensurável em termos de capital social.

Também nos serviços de saúde alguns dos cuidados prestados mudaram para o formato online, de modo a reduzir o congestionamento nos hospitais. Será, provavelmente, na área da saúde que se verificarão os maiores avanços no que diz respeito aos serviços prestados à distância. Algumas das práticas médicas actuais, como, por exemplo, as consultas para obtenção de receitas, são obsoletas e inúteis. A telemedicina e outras alterações inovadoras introduzidas durante os picos da pandemia, assumirão provavelmente no futuro um papel ainda mais relevante.

Na área da saúde o principal desafio que se coloca – que, aliás, já se colocava bem antes do início da pandemia – é o de, não aumentando significativamente o montante das despesas, porque os recursos financeiros não são inesgotáveis, disponibilizar melhores cuidados de saúde à generalidade da população. Para quem não é especialista na matéria, só se antevê uma receita: melhor organização e gestão dos recursos, maximizando as potencialidades de toda a rede de prestadores existentes, funcionando em termos de um sistema bem articulado.

Para minimizar os danos provocados pela pandemia e evitar a propagação de infecções, foram introduzidas algumas medidas que restringiram a liberdade individual e afectaram a privacidade. Além do estado de emergência e do confinamento, medidas aparentemente mais inócuas, como o rastreio de contactos e o uso de máscara, contribuíram para reacender a discussão sobre o desejável equilíbrio, sempre difícil de alcançar, entre liberdades civis e segurança. Espera-se que a pandemia não tenha estimulado o apetite pela utilização de tecnologias de vigilância de massa!

Para finalizar, uma breve nota sobre as relações entre ciência e política. O desenvolvimento científico tem desempenhado, ao longo do tempo, e mais nitidamente nos últimos séculos, o papel principal no progresso da Humanidade, em termos da melhoria das condições de vida e de longevidade. Desta asserção não se poderá, todavia, inferir a desejabilidade, ou a inevitabilidade de um governo da ciência. A fórmula à justiça o que é da justiça e à política o que é da política, várias vezes enunciada pelo Primeiro-Ministro, também deve ser aqui aplicada, com as necessárias adaptações. As recentes declarações proferidas nos órgãos de comunicação social, por um lado, pelos ocupantes de dois dos mais altos cargos políticos e, por outro, pela Directora Geral de Saúde, a propósito da vacinação dos jovens dos 12 aos 17 anos, não cumpriram o preceito. A dissonância, seguida de brusca consonância, descredibilizou, ainda um pouco mais, a DGS.