Quando a Fundação Francisco Manuel dos Santos me convidou para escrever um livro sobre dívida pública, acedi com gosto, mas disse que o livro não seria apenas sobre as causas da dívida mas sobre democracia, pois é o mau funcionamento desta que determina aquela. Na realidade um tema que merece ser bem estudado é o da democracia – ou seja por que processos sociedades organizadas chegam a decisões politicas, utilizando um método a que chamamos democrático. Sabemos que existe uma diferença abissal entre aquilo que é a democracia real com os seus problemas (Bobbio) e a democracia ideal que deveria ser, a meu ver, deliberativa (Habermas). Esta última consiste, não apenas em aplicar a regra da maioria para decidir, mas em, previamente à votação, haver processos de estudo, análise e deliberação no espaço público e político, em que todos têm a oportunidade, de forma justa, de fazer valer os seus argumentos.
Quando se passa da teoria à prática, há uma frase muito utilizada e algo tautológica: “a democracia é a arte do possível”. Não que não contenha alguma verdade, mas presta-se à justificação de qualquer status quoe de toda e qualquer decisão política por pior que seja. “Foi o que se conseguiu fazer… dados os condicionalismos.” É a chamada verdade de La Palice.
A análise e estudo técnico de temáticas com alguma complexidade como é o processo de descentralização (quer para regiões administrativas quer para municípios) desenvolve-se sobretudo em meio académico – universidades, politécnicos e centros de investigação. No caso da regionalização ela teve o seu auge faz agora vinte anos, por alturas do referendo à regionalização. No caso da descentralização para municípios, existem algumas obras (poucas em relação à dimensão da empreitada), nomeadamente na vertente financeira. O mesmo se diga em relação ao tópico mais vasto da reforma do Estado das suas funções, dos seus processos, da sua organização e da sua maior ou menor eficiência. Existem algumas obras coletivas, alguns bons estudos sectoriais (e.g. justiça), mas lacunas gritantes em muitas áreas.
Se do lado da academia não proliferam estudos técnicos sobre a reforma do Estado em geral, e a descentralização em particular, nos frágeis think tanksassociados aos partidos políticos ainda menos. Não admira que o XIX governo constitucional (PSD/CDS) tenha aprovado um guião, muito pobre, sobre a reforma do Estado, dedicando escassas linhas à transferência de competências e identificando áreas (e.g. educação, ainda sob responsabilidade central, serviços locais de saúde, contratos de desenvolvimento e inclusão social, cultura e outros) e mencionando vagamente os objetivos dessa transferência (maximizar a eficiência e a coesão territorial). Nessa altura o PSD convidou o PS para o entendimento sobre a reforma do Estado, mas o PS recusou.
O PS colocou no programa do XXI governo, como elemento essencial da reforma do Estado, a descentralização, definindo as principais áreas (“educação, ao nível do ensino básico e secundário, com respeito pela autonomia pedagógica das escolas, da saúde, ao nível dos cuidados de saúde primário e continuados, da ação social, em coordenação com a rede social, dos transportes, da cultura, da habitação, da proteção civil, da segurança pública e das áreas portuárias e marítimas”). Basta comparar as áreas identificadas para se perceber que existem zonas de confluência e que há razões para um acordo político entre PS e PSD sobre esta matéria.
Tudo fácil, portanto? Não. Há três problemas essenciais nesta temática. O primeiro, é o de saber se é possível fazer uma descentralização racional sem o nível intermédio da regionalização administrativa (como defendem BE e PCP e defendeu o PS). O segundo, é o de clarificar os princípios (eficiência, equidade, eficácia,..) que são relevantes para determinar, dentro de cada área sectorial, o que deve ser descentralizado e o que deve permanecer centralizado (com eventual desconcentração). Esta uma dimensão crucial da análise. O terceiro, o de definir os envelopes financeiros, município a município, associados às competências descentralizadas em cada àrea o que, segundo o acordo PSD/PS, deverá ser feito até ao final da sessão legislativa (setembro).
A Proposta de Lei para alterar a Lei das Finanças Locais (PPL LFL), deu entrada na AR na Comissão de Poder Local apenas em Maio, com conexão à Comissão de Orçamento e Finanças para ser debatida já em plenário a 16 de Julho e votada a 18 de Julho. O Governo, terá até 15 de Outubro, de incorporar no OE 2019 um “Fundo de Financiamento da Descentralização” (previsto na PPL LFL). Como é bem salientado no Parecer da Associação Nacional de Municípios, “desconhecem-se os termos em que será criado, implementado, distribuído e articulado.” Um dos pontos essenciais da descentralização, que é a componente financeira, está assim completamente omisso. A Assembleia da República estará assim a fazer legislação sobre descentralização financeira a mata-cavalo sem sequer conhecer estudos que a fundamentem, como bem observa Paula Santos (PCP) no seu Parecer.
Em resumo, há poucos estudos na academia, escassa reflexão e debate nos think tanks da sociedade civil ou partidários. Na AR fazem-se diversas audições, sem documentos de trabalho que as sustentem, salvo honrosas excepções, o que não permite verdadeira deliberação política. E como corolário de tudo isto, os partidos políticos (PSD e PS) criaram uma “comissão independente para a descentralização” em que se pede a técnicos para estudarem e apresentarem propostas sobre a descentralização, organização e funções do Estado, algo que é eminentemente político. Sou favorável a acordos alargados sobre questões estruturantes do regime, incluindo PS, PSD e outros partidos, mas assentes em estudos e debates prévios. Na descentralização está a colocar-se a carroça à frente dos bois.
Voltemos onde começámos, a democracia. Um democrata realista dirá que era possível fazer bem melhor. Um cínico contraporá: é o que é possível e a política é a arte do possível.