Falar de Armanda Passos é falar de afectos. É falar da prima pintora do Porto. O meu primeiro contacto com a pintura foi precisamente com uma serigrafia dela trazida pelas mãos do meu pai. E como foi impactante a boneca colorida de olhar marcado e penetrante. Se o mundo de Armanda Passos é sobretudo inundado por uma atmosfera feminina, para mim, na minha intimidade e a nível pessoal é masculino, pois é inevitavelmente a lembrança do meu pai. Eles eram primos, nascidos no mesmo ano de 44. Brincaram juntos na infância, e em encontros pontuais ao longo da vida, trocaram histórias e memórias com um sentido humorístico próprio. Agrada-me pensar que noutra dimensão continuem algures a ecoar a espontaneidade dos risos. As pessoas inteiras transcendem a distância física. À parte a dimensão familiar, Armanda Passos suplanta o meu plano pessoal. Pertence a todos que com ela contactaram. A sua pintura é transmissível e contagiante.
Universo feminino com a companhia constante de bichos. Corpos e bichos expressivos. Presenças exuberantes. Variações de um mesmo rosto e de um mesmo corpo volumoso que se multiplica e prolifera nas obras ao longo das várias épocas. A mesma figura de fundo desde sempre. A transmutação dá-se mais pelas roupagens e as cores, sendo estas oscilações cromáticas sempre fortes e vibrantes. De forma lúdica parece haver uma ampliação e exploração da singularidade que a si mesma se ultrapassa ao conquistar a pluralidade. A personagem recria-se continuamente sendo uma e sendo tantas.
O psicanalista Otto Rank, no seu livro “Art and Artist”, de 1932, a dada altura refere que o impulso criativo tenta transformar a vida efémera numa imortalidade pessoal. Mesmo que Armanda Passos não manifestasse ambição de se tornar uma artista conhecida, uma vedeta, como dizia, pois acima de tudo seu prazer era “simplesmente” pintar, querer estar na vida e sobreviver com certa imaginação, torna-se imperativo para uma artista da sua dimensão, a sua obra de facto eternizá-la. Pelos gestos criativos, a obra dos artistas transformam a morte em vida. A força da pulsão é expansiva.
As mulheres de várias vestes e muitos corpos, enlaçadas em animais que ora se fundem e confundem com contornos antropomórficos, interpelam lugares íntimos e talvez mais primitivos. Questionam a fronteira entre a realidade da figurabilidade representada e o imaginário da fantasia latente que sugere cada obra. O contacto com cada pintura é um convite a inventar para cada qual uma história, ou seja, a criarmos nós como espectadores participantes um manancial de histórias confluentes ou dissonantes, sobrepostas ou paralelas, com sentido ou no sense, felizes ou tristes. A partir da imagem, sermos capazes de ouvir o que amplia a nossa subjectividade.
Os seres, como também chamava a Armanda Passos, que olhamos como mulheres, são libidinais. Atraem-nos e suscitam curiosidade de ver para além da tela. Daí esses apelarem à nossa própria criatividade. Provocam-nos a capacidade de sonhar. Velam e desvelam uma dupla intimidade, delas (personagens) e nossa. Quem seduz quem? Quem fala com quem?, num diálogo sem palavras.
Quando entramos na exposição que está agora patente até ao fim de dezembro na Fundação Champalimaud, mergulhamos num lugar que nos é familiar. Pela disposição das pinturas que preenchem as paredes da sala, ficamos submersos no mundo “Passiano”. Mesmo sem querer, “passarinhamos”. Não há espaços brancos entre as pinturas, encontrando-se todas seguidas; como se todas completassem uma só gigante tela. Abraçados por Armanda Passos, é como se no universo uterino nos encontrássemos. Espaço intimista. Espaço feminino. Espaço sagrado. Uma sala útero com paredes férteis e vasos comunicantes onde as tais figuras de mulheres e bichos falam entre si. Contagiados pela cor, paradoxalmente, encaixados no ovo, lá podemos voar. Sem preconceitos, sentirmo-nos humanos. Como dizia Armanda, “antes do mundo da arte, há as pessoas”…
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