Há cerca de duas semanas, Luís Montenegro terá fechado a porta a coligações com o Chega, após uma alucinante sucessão de declarações. Na verdade, foram só duas: uma na noite das eleições (“não vamos governar nem a Madeira, nem o país, com o apoio do Chega, porque não precisamos”), outra dois ou três dias depois (“não é não, ponto final”). O “não é não” pretendeu enterrar o dúbio “porque não precisamos”, que muito excitou o comentariado português (o comprometido e o descomprometido).

Perante isto, o auto-denominado grupo “Direita Verdadeira” (DV), com um misto de gozo e rancor, marcou posição com pujante sarcasmo: está a partir de agora desfeito o coágulo que, obstruindo a artéria eleitoral, impedia o aporte de votantes no PSD – tese essencialista, segundo o grupo DV, da sua nêmesis à direita, o DF (“Direita Fofinha”) –, não havendo, por isso, nada mais a impedir aquela que será uma vitória robusta do PSD e/ou do bloco PSD/IL/CDS (ou seja, toda a direita excepto o Chega). Afinal de contas, era isso que faltava, não era? Não, não era. Nunca foi. Já lá irei.

Por razões de clareza, convém explicar o grupo DF à luz da exegese produzida pelo grupo DV, que define quem é o quê à boa maneira esquerdista: os membros do grupo DF caracterizam-se pela idiotia utilitária concubinada com o ideário socialista, e por um recorrente temor ao que a esquerda possa deles pensar. Uma maravilha.

Dá-se o caso deste vosso humilde simpatizar com a ideia de um PSD “assertivamente indisponível” no que respeita a possíveis coligações com o partido do doutor André Ventura. “Não” deve mesmo ser “não”. Vou tentar explicar porquê, correndo o risco de “inscrição” compulsiva no Dê Éfe (uma transposição manhosa do não menos manhoso classificativo “RINO” na política americana).

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Começo pelo patinho feio: a estratégia política. O eleitorado de direita – uma agremiação heterogénea cujo território mental dificilmente poderá ser cartografado no espaço de uma infame crónica, mas sobre o qual podemos afirmar, sem vício logorreico, tratar-se de gente que oscila entre a disposição conservadora, o liberalismo económico e uma aversão primordial ao esquerdismo, não raras vezes politicamente difusa mas maioritariamente inclinada para o centro – o eleitorado de direita, dizia, precisa de compreender que não é indiferente votar no Chega ou no PSD por “estar na cara dos protagonistas” o afago velado por agora travestido de desdém. Dito de outra maneira, o eleitorado de direita precisa de interiorizar que um voto no Chega é um voto perdido, que em nada influenciará futuras governações e só contribuirá para o pântano.

O PSD não precisa de muletas ou cães-de-fila para fazer oposição. Nada, nem ninguém, impede o PSD, muito menos o doutor Ventura, de liderar uma alternativa não socialista que explique limpidamente por que razão devemos optar por A, B e C, em vez de V, X e Z. O PSD precisa de foco, energia, capacidade de decisão e amplitude de visão, alavancado pela noção de que há uma enorme massa de votantes que, seja confortavelmente aninhada nas supostas sinecuras do Estado, seja em liberdade na natureza, permanece inteiramente disponível para escutar e assimilar ideias simples, inteligíveis e certeiras, que espelhem a pretensão de um rumo e expliquem relações causa-efeito à la longue. E precisa de o fazer com rostos que transmitam confiabilidade, seriedade e carácter. Um desafio, portanto.

Acresce que a esquerda, e em particular o PS, precisa de mostrar o jogo. Um “não é não” poderá esvaziar o chinfrim que a esquerda em peso, com o seus anões guerreiros nas redes sociais, tem produzido recorrendo à técnica da amálgama: toda a direita é igual e um PSD hesitante prova-o. É tempo de acabar com a farsa e escancarar a má-fé. Afastada qualquer hipótese de coligação com o Chega, caberá ao PS, enquanto putativo partido-mor da esquerda democrática, demonstrar até que ponto o seu asco ao Chega não era cínico. É que, à hora a que vos escrevo, a poucos quilómetros de distância da casa presidida pelo inefável doutor Silva, o odor a cinismo mantém-se forte.

Avanço para questões de princípio. Em 2015 aceitei, com uma naturalidade que até a mim me surpreendeu, a golpada gerigoncial nutrida a rancor e oportunismo, talvez conduzido pelas rédeas de uma disposição avessa a reacções passíveis de conjurar assombros estúpidos e indignações inconsequentes (aquilo que PS, CDU e BE fizeram foi inatacável na forma, é bom repeti-lo). Mas sinalizei, à época, a desconformidade entre legitimidade formal e legitimidade material que a solução emparedou, da mesma forma que sinalizo, hoje, a fortíssima divergência entre legitimidades que a cena política em Espanha tem levado aos palcos. Entendi, e entendo, que a experiência democrática sai fragilizada quando partidos programaticamente contrastantes, de natureza antagónica, com cosmovisões e níveis de civilidade diametralmente opostos, resolvem aliar-se por puro tacticismo e videirismo. É uma frase batida, mas aqui vai: não pode valer tudo, em política. Dessas soluções extrai-se um mosto que revelará sempre desrespeito pelo eleitorado e falta de seriedade política. Se isto não acentua o paulatino declínio moral e ético do sistema democrático que tantos e tão ilustres entusiastas reúne, não sei o que o fará.

O grupo DV tende a desvalorizar o partido do doutor Ventura, e nalguns casos a apoiá-lo ostensivamente, com base em dois bordões: 1) “na presença de um grande mal, tudo pode e deve valer”; 2) “o verdadeiro inimigo é o socialismo, o resto não interessa discutir”. Em 2023, esta parece ser a solda que deve colar familiares e amigos, submergindo diferenças, princípios, inteligências, estilos e decoros, em nome de uma emergência climática (outra). Curiosamente, em 2015, a esmagadora maioria dos membros do grupo DV criticou veementemente a geringonça, fundada, precisamente, no mesmo pauperismo intelectual que caracteriza os supracitados bordões, então inaceitáveis. Escuso de revelar o resultado do teste “cadê a coerência?” na comparação entre o valente DV e o cobarde DF. Alguém mudou de critérios.

Quando o grupo DV felicita cinicamente o grupo DF por, finalmente, estarem reunidas as condições para uma remontada vitoriosa do maior partido da oposição, não está só a ser provocadoramente desonesto: insiste no azedume e na divisão entre puros e impuros. Fundando o meu juízo no convívio próximo com gente que o grupo DV classificaria facilmente de traidora (omito nomes para preservar a sua integridade física), estou em condições de assegurar que nunca, ninguém, em momento algum, achou a recém-anunciada posição da direcção do PSD como um toque de Midas. É, aliás, convicção forte no seio de ambos os grupos – um fogacho de convergência, assinale-se – a de que o doutor Montenegro e os escudeiros que forram o lado visível do doutor Montenegro, são gente que não deve muito à inteligência, ao nervo e ao faro políticos. O caminho será muito difícil, para ser optimista. E para animar o circo, recordemos que o PS do doutor Costa ancorou prazenteiramente no imenso mar da propaganda e do pensamento mágico, num estilo e dimensão sem paralelo no pós-25 de Abril, por onde navegam e vão morrer todas as incompetências políticas.

Perpassa este artigo um anátema, sobre o qual posso, apenas, dizer o que penso de forma sinóptica dado o avançado do texto. Naquilo que me é permitido observar, o Chega é, à direita, a expressão política pura do preconceito, da mentira, da demagogia e do oportunismo. Nada move o doutor Ventura para além da conquista de votos e simpatias assente na exploração indecente das angústias e dos problemas dos portugueses, agudizados, importa dizer, por uma casta de políticos que, irresponsavelmente, e no seio dos partidos do “arco governativo”, ajudaram durante décadas a adubar o terreno onde o populismo (não só o do doutor Ventura, diga-se) floresce. Os gritos do doutor Ventura; os esgares do doutor Ventura; as tiradas “rijas” do doutor Ventura; o punho cerrado do doutor Ventura; o bullying político do doutor Ventura; a piedosa religiosidade do doutor Ventura; a megalomania do doutor Ventura; a agenda tremendista do doutor Ventura – tudo é expressão da estratégia abutre de um pequenino caudilho, treinado na esgrima futebolística e no basfond da política, que procura agora capturar votos a troco de coisa rigorosamente nenhuma. Porque é de um enorme vazio que se trata. Não gostaria de ver a direita democrática, na qual me revejo, com todas as fragilidades e defeitos que o caldo de uma democracia pueril ajuda a expor, associada a este espectáculo deprimente.