Carl Reiner estava a cinco minutos de subir ao palco para um número de stand-up comedy. Com ele estava Steve Martin, que lhe pergunta: “O que vais apresentar? Conta aí uma ou duas piadas”. Reiner responde: “Não faço a mínima ideia.” “Como assim ‘não faço a mínima ideia’? Vais subir ao palco dentro de cinco minutos e não preparaste uma única piada?” Resposta de Reiner: “Vou limitar-me a dizer aquilo em que eles estão a pensar.”

André Ventura tem uma fórmula: dizer aquilo que ele acha que as pessoas estão a pensar. E não está errado: muitas pessoas estão a pensar “aquilo”: que os “pretos” e os imigrantes deviam voltar para a terra deles; que a classe política é só “putedo”; que os ciganos são calões e arruaceiros; que os magistrados e os advogados estão em conluio com os poderosos; que o RSI só alimenta parasitas; que as mulheres deviam estar quietinhas, em casa, a cuidar dos filhos; que a homossexualidade é uma doença; e por aí fora. Que gente é esta? Lamento informar: são pais, avós, primos, tios, irmãos, amigos, colegas de trabalho. Gente com quem habitualmente convivemos ou nos cruzamos e que, na generalidade, é bondosa, trabalhadora, amiga do seu amigo.

Apenas crianças, tolinhos ou distraídos podem pensar que só monstros peludos ou seres amorais habitantes de caves e vãos-de-escada defendem ou professam estas ideias. Ainda é cedo para um cliché? A natureza humana é incognoscível. Tirando os casos patológicos, que são, estou em crer, uma minoria, a maior parte destas pessoas não está demente. A certa altura das suas vidas, divergiram de um pensamento e comportamento civil, equilibrado e razoável. Tornaram-se paulatinamente permeáveis à insídia, ao picaresco, às teorias da conspiração e às declamações grandiloquentes dos que se voluntariaram para denunciar heroicamente os “males da sociedade”. Gente madura para aceitar a chegada de um messias ou de homens providenciais.

As razões para que tenham chegado a este apeadeiro numa terra de ninguém são de ordem a mais diversa e não particularmente evidente ou computável. Alguns perderam a vez ou irremediavelmente o lugar no elevador social; outros são “desempregados de longa duração” (horrível expressão); outros reverberam no labirinto da  indignação por constatarem que a corrupção em Portugal está em roda livre há décadas; os mais velhos não percebem o mundo em que vivem, saturado de tecnologia inatingível, gritaria em prime time e falta de educação em barda; outros estão doentes, cansados, endividados; outros, ainda, não encontram em nenhum dos actuais actores políticos, um mínimo de empatia, seriedade ou maturidade. Habita-os uma mistura de ressentimento, medo, ódio e profunda desilusão. Unipessoalmente, dão corpo àquilo a que Oakeshott chamava “the individual manqué”: indivíduos “falhados” que sofrem da incapacidade de ter vida própria e procuram inorganicamente uma horda produtora de sentidos e fidelidades.

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Isto não justifica ou desculpa Ventura. Nem deveria ser preciso dizê-lo. O facto de Ventura saber tudo isto e de usar tudo isto em benefício próprio, faz dele uma pessoa a caminho do execrável. Para além de manipulador, Ventura já provou à saciedade que é racista e xenófobo, mentiroso e arrivista. Ventura observa o cardápio dos preconceitos mais hostis e pensa “de que forma posso usar isto”. A “verdade” de Ventura é instrumental. O que é perigoso em Ventura, e devia levar os partidos democráticos a rejeitar acordos com o Chega (que não é o mesmo que rejeitar os eleitores do Chega) não é só o carácter ardiloso e manhoso da sua conduta, é a natureza das suas causas: divisionistas, assentes na execração de grupos, repletas de elementos persecutórios indignos, por maioria de razão inaceitáveis.

Março de 2020. Início da pandemia. António Costa, primeiro-ministro de Portugal, político de esquerda nado e criado nos interstícios dos corredores partidários que a taxonomia veio a ditar como “respeitáveis”, garantia em directo na televisão, com o ar mais sério do mundo, “até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar nada”. Já nada era verdade então.

Abril de 2020. António Costa: “Estou em condições de assumir o compromisso de que no início do próximo lectivo, aconteça o que acontecer, teremos assegurada a universalidade do acesso em plataforma digital, rede e equipamento.” Não estava em condições e pouco ou nada foi assegurado.

Setembro de 2021. António Costa é entrevistado na TVI. Miguel Sousa Tavares declara-se preocupado como facto de os países do leste europeu terem ultrapassado Portugal em matéria de rendimento. António Costa responde: “Quando entrámos para a UE, em 1986 – vamos comparar com a Europa a 15, que é aquela com que podemos comparar – o nosso produto era cerca de 53% da média da EU. Hoje é 73%. Ao longo destes anos aproximámo-nos dos países mais desenvolvidos da Europa.” Ardilosamente, Costa omite que, no início do ano 2000, o PIB per capita português era já de 72% da média da UE a 15. Como bem apontou Luís Aguiar-Conraria, considerando a Europa a 28, ou seja, incluindo os países que eram mais atrasados do que Portugal, constata-se que o rendimento português em 2000 era de 83% e que hoje, volvidos 20 anos, é de 77%.

Autárquicas 2021. António Costa decide ir a terreiro. Percorre o país em campanha, prometendo tudo a todos. Acena com o PRR como quem agita um maço de notas. Insinua que os candidatos do seu partido terão acesso facilitado ou devidamente orientado “aos fundos”, uma insinuação absolutamente mendaz. De passagem, num discurso grávido de um vigor tumefaciente, ameaça a administração da Galp com uma surra em forma de lição, recorrendo a um tom e teor vulgares. Costa ensaia uma fusão de estilos (entre o caudilho e o cacique), debitando “carismaticamente” um lero-lero exótico a plateias putativamente incautas, capazes de deglutir com augusto prazer a quentinha sopa populista.

Não, não estou a fazer qualquer equivalência entre António Costa e André Ventura. Para além de inútil, seria estúpido. Nem acho que estejamos a três quilómetros de uma estação bolivariana ou a poucas milhas de atracar ao cais de Havana. Mas – e reparem na singularidade deste “mas” – seria fundamental que António Costa e a generalidade dos políticos em Portugal compreendessem duas ou três coisas. A primeira: o povo não é inepto (pelo menos não totalmente ou sempre). A segunda: políticos dignos desse nome deviam ter a clarividência de compreender que o dark side of the force se alimenta da mentira e das meias-verdades, da falta de coragem e das promessas improcedentes, dos recorrentes falhanços nas intendências da res publica, da mais descarada hipocrisia e da boçalidade argumentativa. Parafraseando Machado de Assis, estes elementos são a solda que consubstancia toda a deriva e inscrição populistas. A terceira: não precisamos de santos, mas definitivamente passamos melhor sem burlões. Ao contrário de Ventura, que nada tem que provar, o chefe do governo de uma democracia liberal tem a obrigação acrescida de promover um ambiente político são e sério. Quando quem tem essa obrigação traja prazenteiramente a indumentária populista – mentindo, omitindo, deturpando e distorcendo -, não pode esperar boa safra. Acima de tudo, não pode limitar-se a culpar os ímpios. Deverá começar por se olhar no espelho e ver reflectido o que muitos portugueses já contemplaram.