Ando encantado com a produção literária (da baixa, nas redes sociais; à alta, nos jornais) que a esquerda (recorro à sinédoque para referir “pessoas simpatizantes ou militantes dos partidos de esquerda”) tem dado à estampa neste ano 2 D.C. (Depois do Chega) sobre a putativa “boa direita” (conservadora, cristã, tradicionalista q.b., previsível e, no limite, anjinha) e a “direita má” (trumpista, venturista, belicosa, inorgânica, intolerante, acéfala, que deixa de fumar por motivos doutrinários e, no mínimo, bruta).

A mais recente manifestação veio pela mão de Ferreira Fernandes, eminência jornalística certificada, intocável por via estatutária, homem de esquerda e estilisticamente devedor de Nelson Rodrigues (wishful thinking do próprio). No monumento literário do passado dia 20/09/2020 (Ferreira Fernandes está na fase em que só desprende monumentos, Deus o guarde), invoca Francisco Mendes da Silva como exemplo da “boa direita”, atribuindo-lhe os epítetos “de direita e moderno” e “conservador com a exacta noção do que pode ser o próximo futuro”, a propósito do que o Francisco escreveu no Twitter contra Trump (passo a citar: “Nos EUA, a urgência é substituir o actual presidente por um Homo sapiens. Um qualquer. Depois logo se vê.”)

Há duas semanas, José de Pina, também ele um homem de esquerda e humorista (não necessariamente por esta ordem), no programa Irritações (SIC Radical), volta a referir o Francisco como um exemplo da direita-que-sim-senhora, aproveitando para zurzir no Alberto Gonçalves, representante da “direita trauliteira” (nos dias bons) ou da “extrema-direita” (nos dias azougados), que trata Ventura com uma bonomia despudorada. Totalmente inaceitável.

Há dias, desta vez ao vivo e a cores, apercebi-me do mesmo tipo de mortificação quando uma amiga se interrogava sobre o paradeiro da direita civilizada, inimiga do whataboutismo e adepta de cordões sanitários contra Venturas e quejandos. Tudo indica, desapareceu.

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Afiguram-se-me duas curiosidades levemente interessantes e pontualmente divertidas. A primeira: a esquerda dita “civilizada” (haverá outra?) acha-se tão ungida e está tão autocentrada que jamais lhe ocorrerá aferir que responsabilidade lhe coube na eclosão das excrescências extremistas que agora aparentemente a afligem. Até que ponto os seus prolongados e prazenteiros banhos no tanque populista, impregnados da mesma espuma whataboutista, tendenciosa e desonesta que agora a desconsola, poderão ter concorrido para a degradação do debate público e aberto caminho a “movimentações inorgânicas”. Lembremo-nos do asseio com que a esquerda “civilizada” habitualmente tratava Assunção Cristas há muito pouco tempo, a mesmíssima Assunção Cristas que tinha Francisco Mendes da Silva e Adolfo Mesquita Nunes nas suas hostes: pafista, retrógada, reaccionária, snob, tonta, queque, interesseira, perfeita para o body shaming, etc. etc. Até ao Chicão final.

A segunda: há uma direita que não se revê no Creepy Bunch Trump, Ventura, Bolsonaro e Orbán? Há. Ela está aí, para quem a quiser observar. Interessa à esquerda? Nem por isso. O Creepy Bunch toldou a esquerda na sua percepção da realidade, estupidificando-a. Bater no ceguinho entorpeceu-a e acentuou-lhe o sentimento de self-righteousness que sempre a inebriou, tornando-a tendencialmente mais exclusiva do que inclusiva, intolerante do que tolerante, destrutiva do que construtiva. Quem malha no Creepy Bunch só pode ser espectacular, certo?

Num corredor paralelo, mas contíguo, enfeitado de bons sentimentos, o hiper-iluminismo jacobino e progressista dá passos firmes e largos na defesa de correctivos. Desta vez, a revolução será televisionada e terá chancela oficial: a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento fará dos petizes agentes da virtude; as estátuas deixarão de nos importunar; os pronomes serão oficialmente actualizados; os “discursos de ódio” monitorizados e retirados. As brigadas do politicamente correcto estão mais “empoderadas” do que nunca. Uma opinião passou a ter a carga valorativa de uma escritura existencial. A cancel culture fará o seu caminho. Recentemente, a cidade de Seattle passou a levar a cabo “diversity training”, convidando os trabalhadores brancos a libertar-se da sua “whiteness” e a combater a sua “internalized racial superiority”. Já não há pessoas: apenas grupos estereotipados.

Em geral, a esquerda está mais feroz, mais sectária, mais policiadora do pensamento desviante. As manifestações de afecto da esquerda bem-pensante em relação à putativa boa direita, oniricamente Ned Flandersiana, são, por isso, hipócritas, arrogantes e escondem a tendência maximalista “quem não é por nós é contra nós”. Não tenhamos ilusões: no actual estado de acantonamento justicialista e sacrossanto, tentativas de distinção entre a boa e a má direita por parte da esquerda são, na sua essência, impudicas expressões de auto-legitimação. A torrente anti-Creepy Bunch tudo arrasta e tudo mistura. Não é por acaso que as Marianas Não-Tenho-Amigos-De-Direita Mortáguas e os Pedros Nuno Não-Precisamos-Da-Direita-Para-Nada Santos são hoje “referenciais educativos”, para recorrer a uma expressão do eduquês. A implacabilidade é a doutrina, a trincheira a “zona de conforto”.

Não podemos, contudo, desistir. Seja à direita, seja à esquerda, é a boa-fé e são no mínimo as boas maneiras (saber ouvir e conversar, por exemplo) que nos podem juntar à mesa. E será no plano unipessoal e não tribal ou determinista, que tudo se jogará. Pelo caminho, perguntem também pela “boa esquerda”, se não for pedir muito. É para um amigo.