Estou farto de brincadeiras…
Fui sequestrado, já duas vezes…
Já chega, não gosto de ser sequestrado…
É uma coisa que me chateia, pá
Pinheiro de Azevedo

Se estou bonzinho? Vai-se andando. Preocupa-me a tísica, a falta de tempo, duas ou três articulações e a saúde dos meus velhos, que já não vão para novos. Aborrece-me, vê lá tu, não poder comprar vinho depois das 20h. E inquieta-me que um guarda nacional republicano, certamente indefectível de Afonso Costa, interpele condutores com a fatídica pergunta “o que está aqui a fazer?” Já os Açores, dizem-me que é lindíssimo nesta altura do ano.

Por que razão subscrevi a carta aberta da “clareza”? Porque sucumbi. Capitulei. A capital estragou-me: passei a conviver com esquerdistas. O viço provinciano e a simplicidade montesina, que me mantinham alerta e desconfiado, foram sendo lapidados pela acção sedativa e continuada de um tipo abrasivo de pusilanimidade, secretamente adentrada entre mordomias e falinhas mansas à meia-luz do Gambrinus ou do Snob. Marxismo, estalinismo, leninismo, ou trotskismo não passam hoje em dia de “ismos” longínquos e difusos, a pedir o relativismo dos sofisticados e a complacência dos civilizados. Comunismo rima com ecumenismo e por alguma razão será. Por Deus: até Louçã é conselheiro de Estado.

Não fosse cómico, o decassílabo “uma direita capitulada” seria absurdo. Custa explicar o óbvio, mas aqui vai: dizer não à extrema-direita não é dizer sim à extrema-esquerda; apelar à decência e à civilidade, como elementos apriorísticos de uma experiência política sã, não é condescendência ou lero-lero, e muito menos uma forma de manter as quotas em dia num clube imaginário ao qual, aparentemente, 54 almas passaram a pertencer; traçar linhas vermelhas ou latitudes que calibrem a tensão entre ideologia e o “practical judgement” de que falava Oakeshott, não é fazer o jogo do antagonista; exaltar ou invocar princípios e valores não é soberba ou tique “bem pensante”, é uma tentativa, provavelmente desesperada, de manter a sobriedade, uma mnemónica do essencial; virar as costas a reles arrivistas, mal formados e sem pingo de carácter, que vivem de acicatar o medo e de usar a mentira como instrumento legítimo, seja à esquerda ou à direita, não é “fofura” ou cobardia, é apostar na salubridade; recusar a equivalência do extremismo do BE e do PCP com o extremismo do Chega não é incompatível com a rejeição dos dois; e, mais comezinhamente, receber socialistas em casa, apoiantes de Costa e da geringonça, não é ceder a Costa e à geringonça: é apenas conversar.

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O ódio nunca foi bom conselheiro. E toda a indignação assinala uma paragem na evolução mental. Algo de entorpecedor se estabelece quando pessoas habituadas à ponderação e ao uso do bom senso se dispõem a abraçar uma espécie de anti-intelectualismo “primordial” que alimenta a ideia de que o “achismo” ou as “convicções” têm o valor facial do conhecimento (vide pandemia), ou achar que sectarismos divisionistas e tribalistas, alicerçados não raras vezes na boçalidade e no primitivismo, são inócuos e não deixam marcas no curto e médio prazo (vide Trump e a polarização americana). Algo de muito errado se passa quando “a minha direita”, se tenho uma, adopta os tiques persecutórios e as reacções descabeladas de uma esquerda implacável e intolerante, que costumávamos condenar e ridicularizar, só porque numa suposta luta sem quartel, pejada de inimigos e barbarians at the gates, os meios parecem estar inteiramente justificados: uma hidra revolucionária não se combate com filigranas de salão.

Convencionou-se, estupidamente, que 2015 marcou o início da Era dos blocos: aconchegos convergentes, cegos e irrestritos, feitos a posteriori, constituirão o padrão, à esquerda e à direita, consumando o domínio da práxis sobre o fastio da substância. Afinal de contas, não foi a saudosa e propalada AD de Sá Carneiro uma mera conveniência de poder? Não, não foi. A 5 de Julho de 1979, Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles assinaram um acordo pré-eleitoral de governo. A AD foi um projecto político estruturado que se apresentou a eleições. E basta comparar Sá Carneiro a Rui Rio, ou Gonçalo Ribeiro Telles a André Ventura, para perceber a monstruosidade do paralelismo. Em 1979, a AD invocava os princípios da democracia, exaltava a libertação da sociedade civil, defendia os valores fundamentais da justiça social e da solidariedade. Em 2020, Rio quer pedir de empréstimo um deputado, Ventura pôr na ordem os “parasitas dos subsídios”. Tudo demasiado deprimente.

Sei perfeitamente que a diabolização do Chega interessa à esquerda. Retira-o da aritmética dos concertos de poder e concorre para conspurcar quem dele se aproxima, mesmo sabendo, como toda a esquerda sabe, que Rui Rio não é um fascista. Mas quão fraco e mesquinho pode ser um líder para aceitar a normalização ou a integração do Chega a troco de migalhas?

Em 2015, António Costa ganhou o poder na secretaria, no rescaldo de uma humilhante derrota, outorgando um acordo parlamentar com rivais outrora intestinos e com posições políticas algumas delas inaceitáveis (ainda hoje o são). Se bem me recordo, foste dos que mais se insurgiram contra o arranjinho.

Lembro o que escreveu Pacheco Pereira: “Nos seus ‘programas activos’, o BE e o PCP caminharam para a democracia, o Chega caminha para fora dela e a força da sua inegável vitalidade vem daí”. O reforço da carga fiscal sobre a classe média ou “os ricos”; o paternalismo do Estado sobre a sociedade; o preconceito ideológico em relação a sistemas de complementaridade com privados; a limitação da linguagem ou da liberdade de expressão a pretexto do politicamente correcto; as 35 horas de trabalho na função pública; as medidas restritivas de combate à pandemia; ou, mais filosoficamente, a eterna tensão entre liberdade e igualdade; tudo isso pode e deve ser discutido aguerrida e apaixonadamente no quadro de uma democracia plural. São temas, diria, clássicos que reflectem cosmovisões divergentes e diferentes concepções do papel do Estado entre a esquerda e a direita. Coisa muito diferente é aceitar discutir, como temas admissíveis ou negociáveis numa democracia europeia em 2020, a castração química; a pena de morte; a segregação de minorias étnicas; a expulsão de imigrantes; a judicialização da política. Ou aceitar a banalização da mentira e da grosseria. Não é uma diferença de grau: é de natureza. Este circo de anões e este caldo reacionário interessam ao PSD? Ao CDS? À IL? Será este o caminho?

Acenas com uma “guerra” e com “inimigos” que nos querem saquear, calar, enxovalhar e enclausurar. Não compro este tremendismo. Mais do que perder o tempo a lutar contra moinhos, estou onde sempre estive: à tua espera para um cozido de grão.

Um grande abraço.