O escritor Ítalo Calvino no seu livro As Cidades Invisíveis imaginou um diálogo fantástico entre o imperador Kublai Khan e Marco Polo, considerado o maior viajante de todos os tempos. Nesse diálogo Marco Polo, sabendo da impossibilidade de o imperador conhecer, em efectivo, a totalidade dos vastos domínios do seu império, resolveu brindá-lo com uma descrição detalhada do mesmo. Utilizou, para esse intento, descrições imaginárias das cidades que desse dito império, supostamente, faziam parte. O propósito primordial de Marco Polo assentou em agradar ao imperador, sendo que os relatos por ele detalhadamente efectuados, ainda que manifestamente surreais, sustiverem e nutriram o desejo e ensejo de o imperador poder sentir que tinha sob o seu jugo um império extraordinário.

Esta obra literária de Ítalo Calvino, onde se constroem cidades imaginárias e consequentes narrativas acerca das mesmas, demonstra que a imaginação humana é dotada de um poder inequívoco e que a força das palavras pode realmente ser determinante na relação com os outros, tendo a capacidade de convencer até mesmo imperadores, mesmo quando essas mesmas palavras e narrativas não passam de eloquentes falsidades.

Parece ser de fácil compreensão que se Kubai Khan conhecesse o seu império não teria necessitado que Marco Polo lhe tivesse franqueado as pretensas maravilhas do mesmo. Daqui decorre, como ilação, que o conhecimento e o acesso à informação é imprescindível para que as pessoas possam conhecer o meio circundante, salvaguardando da melhor forma os seus interesses pessoais e também da comunidade a que pertencem. Esse conhecimento, que os cidadãos devem perseguir, afasta-os instantaneamente do resvalo para a credulidade em relação a narrativas fáceis que, tantas vezes, servem somente para nutrir fragilidades ou atingir escamoteado almejo alheio.

Se esta necessidade é imperativa em cenários de dimensão macro, que confluem e interferem na interpretação transversal do mundo, tal é especialmente imprescindível nos contextos de maior proximidade aos cidadãos, designadamente ao nível local, onde, não raras vezes, se assiste a situações cuja surrealidade rivaliza com o que Ítalo Calvino deu a conhecer no livro As Cidades Invisíveis.

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Muitas das cidades deste país mais não são do que metáforas das construções mentais que os candidatos ao poder local delas quiseram fazer parecer que poderiam vir a ser se para tal viessem a ser eleitos. Essas construções mentais, que semearam na cabeça dos eleitores com mestria, foram devidamente circunstanciadas por programas eleitorais autárquicos, apresentados aos munícipes por ocasião de sufrágio autárquico.

Os programas eleitorais autárquicos são instrumentos de planeamento de grande importância que poderiam garantir um futuro promissor às populações e aos territórios.

No entanto, esses documentos são amiúde a prova de que poderão ter sido redigidos por um qualquer Marco Polo, político de ocasião, com o primordial propósito de agradar a eleitores e obter dividendos eleitoralistas, ao invés de pretender, efectivamente, perpetrar mudanças capazes de catapultar as cidades para um lugar melhor, propiciando às pessoas uma melhor vivencia quotidiana e uma maior esperança no futuro.

Os programas eleitorais autárquicos são manifestações de um conjunto de intenções que, invariavelmente, à medida que o tempo passa, vão sendo substituídos por modos de actuação mais convenientes aos interesses que vão surgindo, a agendas ocultas e a um conjunto de necessidades que a cada momento se torna, de alguma forma, necessário e urgente suprir. E apesar de se ter de reconhecer que este tipo de instrumentos tem características dinâmicas e, por tal, poderem ser susceptíveis a ajustes, a verdade é que têm todo um esqueleto que não é passível de ser incinerado e injustificadamente substituído por outro.

O que está escrito nos programas eleitorais locais raramente é alvo de escrutínio por parte dos eleitores durante o mandato dos eleitos locais e isso é algo que é urgente e necessário mudar na consciência colectiva dos cidadãos. Basta para isso pensar-se que foi a influencia das promessas e conjunto de intenções contida nestes documentos que guiaram os eleitores a uma escolha num candidato e projecto autárquico em detrimento de outro.

O livro As Cidades invisíveis de Ítalo Calvino poderá ser uma homenagem à diversidade das muitas cidades que existem, uma exultação à ideia de cidade e do que estas devem encerrar para quem nelas vive.

Ler ou reler esta magnífica obra literária poderá levar-nos a pensar na responsabilidade que assenta no poder local, que tem a tarefa hercúlea de preservar essa intemporalidade, bem como actuar tendo em vista a valorização das muitas dimensões que as compõem e fazem de cada uma delas espaços multidimensionais únicos.

Ao poder local cabe o desígnio de fazer com que as cidades sejam visíveis, com narrativas coerentes e reais.