As crianças “com problemas” não se podem dividir entre crianças em perigo e crianças perigosas. Mesmo que haja crianças que cometam pequenos delitos ou, mesmo, “ilícitos” muito graves. Por mais que tenham sido, nalgumas circunstâncias, perigosas, elas não deixam de ser crianças. E não deixam de estar em perigo. Não deixam de ter crescido em contextos sociais imensamente problemáticos. Em famílias com enormes carências. Com omissões graves. E com exemplos muito pouco compatíveis com um desenvolvimento saudável. E, não, nenhuma destas considerações pressupõe que se ignorem as coisas graves que possam ter feito. E que não se aja de forma a protegermo-nos desses seus actos e de as protegermos de os replicarem.

Estas “crianças perigosas” têm menos de 16 anos. Algumas, doze ou treze. (Nalguns casos, com uma “folha de serviços” assustadora.) Por isso mesmo, os seus delitos não são passíveis de penas mas, antes, de medidas tutelares educativas. Com as quais se espera que sejam “educadas para o direito”. As medidas tutelares levam-nas a que sejam retiradas das suas famílias. E, nalguns casos, a viver em regime fechado, por um período até dois anos. Com restrições severas das suas liberdades. Nalguns locais que parecem assemelhar-se a prisões de alta segurança para crianças. Para que, na maioria dos casos, vencido o período dessa medida, sejam devolvidas às famílias de onde foram retiradas. Aos pais negligentes (ou, mesmo, perigosos) que já tinham. E aos meios sociais, depauperados, onde cresceram.

A questão que esta semana surgiu nas discussões públicas passou por se saber se seria razoável transformar o serviço militar numa espécie de medida tutelar educativa. O que não parece ser, de todo, razoável. Em primeiro lugar, porque isso pressupõe que se reconheça que as medidas tutelares que terão merecido não funcionam, não as protegem e nem sequer terão servido para que elas se tenham reconciliado com o seu desenvolvimento. Em segundo lugar, porque se se assume, com leveza, que os centros educativos são “escolas do crime”, não se entende que haja medidas tutelares educativas com que se protejam “crianças perigosas” expondo-as a cuidados onde os perigos poderão ser ainda maiores, sem que se retirem consequências dessa constatação. Sem que se deixem de decretar outras medidas tutelares educativas que, aí sim, efectivamente as protejam. E sem que elas sejam, por isso mesmo, consideradas ainda mais em perigo, por via da tal “escola do crime”, enquanto estão à guarda de um sistema que as devia proteger. Em terceiro lugar, pretender-se umas Forças Armadas profissionais, especializadas e altamente diferenciadas e, ao mesmo tempo, considerá-las como o castigo adequado para as “crianças perigosas” é um bocadinho confuso. Se já nem os centros educativos se assumem como tal, converter as forças armadas em casas de correcção para crianças delinquentes não deixa de ser inquietante.

Poderá aquilo que foi dito acerca do serviço militar obrigatório para jovens delinquentes não ter sido claro o suficiente. E ter sido pensado, unicamente, para adolescentes entre os dezasseis e os dezanove anos. Apesar de cumprirem os critérios da Organização Mundial da Saúde para serem considerados adolescentes, são já imputáveis, aos olhos do direito penal. E estarão entre as vésperas da maioridade e a sua efectivação, considerando o direito civil. Aí, a ideia passaria por transformar o serviço militar numa medida cívica que substituísse uma qualquer condenação adequada aos actos que possam ter cometido, levando-as a evitar uma solução judiciária mais pesada. Mas, igualmente, esperando que as Forças Armadas encontrassem uma solução que a sociedade civil terá sido incapaz de discernir. O que, em relação a atitudes isoladas de alguma insolência destes jovens poderia ser passível de algum sucesso. Se bem que, para muitos outros, uma entrada coercitiva nas Forças Armadas, em vez de ser um factor de “educação para o direito” poderia ter o efeito exactamente contrário. Trazendo, por acréscimo, para as Forças Armadas um ónus, a todos os níveis, que não as beneficiaria.

No entanto, em função das declarações do Governo a este propósito aquilo que parece ser mais urgente não será, sobretudo, o que fazer das forças armadas. O que, já de si, é fundamental. Mas que medidas se poderão dedicar a estes adolescentes até aos vinte anos para que eles não sejam divididos entre crianças em perigo e em “crianças perigosas”. E para que as medidas tutelares que as abranjam, não ignorando os actos graves que possam ter cometido, não deixem de as considerar também como crianças em perigo. De forma a que os seus actos não as onerem judicialmente só a elas (mas, também, aos seus encarregados de educação, por exemplo). Não as deixem sem canais de protecção quando estão privadas da sua liberdade e em regime fechado. Nem se ignorem os sítios de onde vêm e quem as deveria ter cuidado até que tenham sido presentes a um juiz. Para que sejam, efectivamente, protegidas e reconduzidas a um desenvolvimento saudável. Se, depois disso, elas vierem a escolher a carreira militar, tanto melhor. É porque terão encontrado nela uma oportunidade formativa. Sem que o façam por castigo e na esperança que sejam as Forças Armadas a substituir-se às suas famílias, às comunidades que acompanharam o seu crescimento ou ao sistema que as deveria proteger e que, segundo o governo, não o terá conseguido fazer.

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