No próximo dia 2 de outubro serão disputadas as eleições presidenciais no Brasil. Durante os últimos meses, a luta coletiva foi reduzida a um duelo a dois e tudo parece indicar que até 30 de outubro, data para que está agendada a segunda volta, assim deverá continuar.

Não nos vamos pronunciar, em concreto, sobre a dinâmica do embate eleitoral entre o Presidente Bolsonaro e o ex Presidente Lula. A propósito deste aspeto cabe-nos somente uma palavra, que cremos óbvia: lamenta-se, naturalmente, a pouco saudável bipartição e bipolarização do sistema político brasileiro, incapaz de gerar uma terceira via com dimensão nacional e exposição pública que lhe permita disputar o sufrágio. Trata-se, afinal, de um sintoma da contemporânea reconfiguração de muitos sistemas democráticos e do crescente antagonismo entre opções eleitorais, que já havíamos testemunhado noutras latitudes.

O que mais nos motiva a composição deste artigo é, de outro modo, uma dimensão muito específica do próximo ato eleitoral brasileiro, e sobretudo dos dias que lhe antecederão: as deepfakes. As deepfakes – evolução contemporânea das hoje já quiçá arcaicas fakenews – são, numa palavra, manipulações constituídas em vídeo ou em áudio (as audiofakes) que, utilizando tecnologia de ponta, conseguem criar uma reprodução em imagem, vídeo ou áudio com um elevadíssimo grau de verosimilhança a uma situação real, da vida.

A tecnologia subjacente às deepfakes não configura, contudo, uma novidade da contemporaneidade: na realidade, vem a ser invocada no cinema e na televisão há vários anos. Todos nós, num momento ou noutro, nos deparámos já com imagens, vídeos ou áudios compostos artificialmente, que só sabemos não corresponderem à realidade da vida porque os acompanhamos através do grande ecrã, estando prevenidos para esse efeito. Foi também através desta tecnologia que pudemos assistir ao “renascimento” de John Lennon ou de Tupac, com os conhecidos hologramas que foram exibidos em concertos. Como sucede na generalidade destas matérias, o problema não está na tecnologia per si, mas sim no sentido mais ou menos responsável que é feito da sua utilização.

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Sucede, contudo, e para infelicidade quase geral, que quando somos confrontados com estas montagens com elevado grau de verosimilhança fora do grande ecrã, nem sempre – ou quase nunca – conseguimos ajuizar da sua veracidade; pelo menos, e isso é certo, nem sempre o conseguimos fazer no tempo útil e devido. Depois das eleições norte-americanas de 2020, antevê-se que este ano as deepfakes inundarão o cenário político brasileiro, tornando muito mais complexo, caótico, hermético e sujo o cenário do suposto debate político-eleitoral. O desfecho não será surpreendente: passará por uma cada vez menor atenção à dimensão verdadeiramente política da disputa, com muitos dos grandes esforços a centrarem-se em acicatar sentimentos de ódio, mentiras e injúrias em relação a ambos os candidatos.

As deepfakes consubstanciam, assim, a mais recente e robusta ferramenta para alavancar campanhas de desinformação política. Para os de nós menos familiarizados com esta matéria, damos um exemplo de dois casos evidentes. No passado dia 17 de agosto surgiu uma das primeiras grandes deepfakes das eleições presidenciais brasileiras. Tratou-se de um vídeo, publicado nas redes sociais, em que a apresentadora Renata Vasconcellos, da TV Globo, teria anunciando uma sondagem eleitoral que daria a liderança ao Presidente incumbente Jair Bolsonaro. Depois do anúncio da pivôt, é mostrado um gráfico de barras visualmente idêntico ao usado pela emissora no mesmo programa. A foto do rosto do Presidente Bolsonaro aparece em primeiro lugar, com 44% das intenções de voto, e a do ex-Presidente Lula da Silva em segundo, com 32%. Ora, a última sondagem eleitoral divulgada pelo IPEC mostrava, no entanto, exatamente o oposto: Lula na liderança, com cerca de 44% das intenções de voto, e Bolsonaro atrás, com 32%. Pouco tempo depois, o canal de televisão veio prontamente desmentir o vídeo publicado, não conseguindo, contudo, a atuação relativamente expedita evitar que o referido vídeo alcançasse vários milhões de visualizações.

Outro caso de deepfake relativamente recente foi o de um vídeo partilhado, em março passado, onde o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky alegadamente se dirigia aos compatriotas ucranianos, pedindo-lhes que baixassem as armas e se entregassem ao invasor russo; o vídeo era falso e os meios de comunicação oficial da presidência ucraniana intervieram para o desmentir. Se resulta simples compreender o alcance de um vídeo falso amplamente partilhado em período de campanha eleitoral, a perigosidade de um acontecimento semelhante que tenha lugar em contexto de guerra é de sobremaneira superior.

Um conjunto de grandes tecnológicas garantiram já que farão um maior esforço no sentido de desenvolverem mecanismos capazes de diagnosticarem e de agirem sobre as deepfakes em tempo útil, sobretudo em contexto de campanha eleitoral e de guerra. E torna-se, de facto, imperativo que assim seja: pela pouca agilidade que não raro se impõe pela própria natureza das coisas, o poder judicial terá alguma dificuldade em conseguir agir tempestivamente sobre este tipo de publicações em formato vídeo, que muito rapidamente consegue atingir milhões de visualizações e milhares de partilhas, utilizando como veículo as redes sociais e como combustível o emocionalismo primário que é comum em algumas destas contendas.

Num cenário eleitoral de grande bipolarização política e onde as disputas são profundamente emocionais, às deepfakes poderá estar reservado um papel ainda maior e mais perigoso do que o que coube às antigas fakenews, em atos eleitorais transatos. Sabemos que o eleitor vendado tenderá a conferir solidez e razão absolutas às notícias e partilhas que vão ao encontro das suas pretensões, que lhe digam o que quer ouvir, que apoiem a sua candidatura e que prejudiquem as restantes, independentemente dos meios utilizados ou dos expedientes invocados para tanto. As deepfakes constituem um atentado ao conhecimento e à verdade, e num cenário como as eleições presidenciais brasileiras de 2022, de profundo antagonismo entre as candidaturas de Bolsonaro e Lula e onde são cultivados ódios viscerais por parte de consideráveis franjas do eleitorado, poderão resultar num perigoso alavancar da violência. Por cá, e pelas suas caraterísticas, o terreno português parece não ser fértil ao ponto de poder gerar fenómenos de igual natureza e intensidade; cabe-nos, contudo, estar atentos e prevenidos.