A democracia é, por natureza, um sistema frágil e imperfeito. Tal como nós. É feita da mesma massa porque existe propter nos homines et nostra salutem. Hoje já se pode dizer isto sem receio de que algum «progressista» não nos entenda. Os seus defeitos, que existiram sempre, não nos devem surpreender e muito menos desencorajar.

Começou por ser um regime de anciãos de aldeia (ou pouco mais) que se arvoravam a representantes de uma elite. O «povo» nem sequer existia. Muito mais tarde a base popular participante foi crescendo e chegou-se à representação de uma pequena parcela da população, nem um quarto. Mulheres, escravos e estrangeiros não contavam. O sufrágio mais alargado foi uma conquista das revoluções inglesa, americana e francesa. Mas ainda longe do sufrágio universal. Os representantes da população eram letrados, proprietários e até padres e nobres. O «terceiro estado» existia, mas eles é que o representavam. E o «povo»? Eram os sans culottes que andavam na rua a assaltar lojas, e logo foram postos na ordem pelos jacobinos.

Quando finalmente atingimos o sufrágio universal, já no século XX, conquista em que o nosso país não recebe lições de ninguém, o povo surge como a principal força eleitoral, e logo se pensou que as coisas estavam prestes a atingir a perfeição. Ilusão.

Se a base popular da representação já não oferecia dúvidas, os problemas da democracia política logo recomeçaram. Já se não discutia agora se o alargado «povo» tinha ou não direito de voto. O que se discutia era a possibilidade de fazer o que ele queria. E queria cada vez mais.

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Que fazer? Lenine resolveu logo o problema e andou uma série de passos para trás apoiado na repressão e numa ideologia intrujona, em vez de na dignidade do cidadão. O fascismo fez caminho paralelo em nome da unidade. O paraíso dos trabalhadores e a pátria imortal equivaliam-se perfeitamente, a democracia foi destruída.

Mas os problemas voltaram. Sufrágio universal garantido, despesas públicas a crescer, direitos humanos ensinados desde tenra idade, porque é que os problemas não acabaram? No início deste século o hegeliano F. Fukuyama pensou que a democracia tinha vindo para ficar e os problemas do passado estavam resolvidos. Enganou-se.

Os problemas não acabaram; transformaram-se. E são hoje mais difíceis do que outrora. O sufrágio universal quer um estado intervencionista e justiceiro, a não ser que a sociedade civil seja tão forte que dele não precise, o que não é o caso português. Tal estado precisa de governos autoritários e de muito, mesmo muito dinheiro. Como a emissão de moeda e o recurso ao crédito no contexto europeu só a conta-gotas, ao invés do que se verificava quando o Estado tinha autoridade nacional, agora não há nem haverá sempre dinheiro. Conclusão: os partidos que ocupam o governo não podem ter piedade das oposições, ou saem de lá depressa, nem da classe média contribuinte a quem tudo se exige. As minorias, cada vez mais numerosas, usam as suas liberdades como arma de arremesso contra a maioria, e esta, por sua vez, querendo arregimentá-las porque delas necessita, nunca as satisfaz. O problema da democracia actual é, pois, de governabilidade. É preciso optar, mas ninguém se atreve porque perde votos.

Leiam o comentário de Adriano Moreira ao discurso de Péricles sobre a democracia ateniense e O Novo Príncipe e voltem a Raymond Aron.

Temos de reformar a democracia, questão eterna. Não temos outro remédio senão proceder por aproximações, contabilizando experiências e erros, isto porque, felizmente, os seus fundamentos já são um dado adquirido, nem temos de nos bater por eles. Instruímo-nos com os resultados. E assim, a pouco e pouco, lá vamos aprendendo alguma coisa. Uma coisa é certa; nada de transformações revolucionárias da democracia, que dão sempre asneira, nem de modificações radicais.

A democracia aperfeiçoa-se através de reformas. E vale a pena; vamos diminuindo as competências legislativas do governo, vastíssimas no nosso país desde 1945, a ponto de constituir caso único na Europa; vamos aumentar as competências das comissões parlamentares de inquérito; vamos olear os meios de democracia directa de natureza participativa; vamos fazer do referendo um verdadeiro instrumento de auscultação da opinião dos cidadãos; vamos limitar as regalias dos deputados; e, sobretudo, vamos apostar na cultura liberal dos juízes, que é como quem diz, tirar-lhes o temor reverencial da Administração que eles continuam a demonstrar, apesar de terem todos os meios legais para a condenar.

É este o percurso, mas depara com uma grave obstáculo: é que o mainstream PS-PSD não quer. Os estatutos constitucionais dos partidos políticos no nosso país, e do governo que deles emana, são hoje os principais obstáculos ao aprofundamento da democracia portuguesa. Tudo passa por uma profunda revisão constitucional em que aqueles partidos não estão obviamente interessados. Mas enquanto esta revisão constitucional com as correspondentes alterações legislativas se não fizer o funcionamento democrático do país continua por aperfeiçoar.