O Deslace

Os seis jovens da Cova da Moura espancados na esquadra de Alfragide em 2015; a agressão de um agente a indivíduos por não mostrarem identificação no Bairro da Jamaica em 2019 resultando em agressões mútuas; a agressão a Cláudia Simões por ter entrado num autocarro na Amadora sem o passe da filha em 2020; a detenção e agressão na esquadra, pelo mesmo agente, Carlos Canha, a dois homens, Ricardo e Quintino; a morte de Odair Moniz… porventura na sucessão de acontecimentos resultado de ter passado um risco contínuo. Podemos sempre considerar que são excepções, mas a cor da pele faz delas uma série: uma população. Qualquer um de nós não espera passar pelo que estas pessoas passaram pelo que temos de aceitar que excepções repetidas confirmam comportamentos e fazem populações.

Os políticos dizem que há muitas formas pacíficas de mostrar o descontentamento. Bom, as manifestações que agora ocorreram a favor e contra a polícia rimam com o que se passou em 2017, quando polícias se manifestaram em apoio dos 18 agentes acusados de tortura e racismo e, depois, aquando do julgamento, em 2018, quando mais de 60 colectivos organizaram uma manifestação (em Lisboa, Porto e Braga) contra o racismo e a violência policial. O que o Ministério da Administração Interna, os deputados e os Presidentes de Câmara deveriam vir dizer é o que se fez desde essa altura para alterar situações e para que elas não aconteçam. Pode ser que agora que se proponha um Plano Transformacional.

Construir uma comunidade intercultural implica tempo e, acima de tudo, cuidado. Já o deslace requer apenas uma série pequena de más memórias que se partilham (hoje à velocidade das redes sociais) e que fazem prever maus encontros. O deslace cria os ‘Outros’ – aqueles que não estão do nosso lado, que estão contra nós. Os polícias foram sendo entendidos como ‘Outros’. E porque nada foi feito agora é a cidade que é a extensão dos polícias. Aquele/a que decidiu que não havia outra opção senão os gangues e a destruição e aquele/a que viu a sua propriedade (o carro, a mota) destruída são agora extensões polarizadas de um problema que ninguém quis verdadeiramente enfrentar e resolver.

A subalternidade, dependência, exclusão e marginalidade das populações de alguns bairros e, ao mesmo tempo, a ausência de acção colectiva é há já algum tempo uma interrogação sociológica. Como tal é possível? Ou seja, como os comportamentos de conformação e consentimento se mantêm, impedindo uma consciência colectiva de revolta?  Agora que a acção colectiva se evidenciou, parece que ao invés de percebermos que foi a conformação que foi de admirar, achamos simplesmente inaceitável a revolta. É, de facto, mais simples, dizer que pessoas normais se tornaram criminosos de repente, sem qualquer sentido – mas tal não é verdade. Isto não ocorreu no vazio (para citar Guterres). A destruição na cidade é, mais uma vez, um conjunto de excepções (esperemos!) que fazem uma população: uma população em revolta. Agora é essa população em revolta que tem de ser escutada, pensada, reflectida e integrada.

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Construção da pobreza e de ilusões

Temos em Portugal a falsa ideia de que somos um país homogéneo. Porventura nunca fomos e aí começa o problema: a não aceitação da diferença pelo seu não reconhecimento. Portugal é um país em que o centralismo enquanto ideologia de regime tem na desigualdade e discriminação uma correlação linear.

A desigualdade/discriminação é, desde logo, um processo territorial que se evidencia ao nível do país e ao nível das cidades. O centralismo lisboeta criou uma periferização da austeridade e da pobreza que se sente agora no próprio centro. A pesquisa feita pela Fundação Manuel dos Santos em 2021 (Faces da Pobreza em Portugal- coord. de Fernando Diogo), dá-nos algumas pistas. O risco de pobreza vai aumentando à medida que se passa da Área Metropolitana de Lisboa para a região Centro e o Alentejo e agrava-se na região Norte e no Algarve, sendo o maior risco na Madeira e Açores. Também cada cidade foi centrifugando os seus pobres para as periferias. A desigualdade é tal que nem o próprio centro (a Área Metropolitana de Lisboa) conseguiu criar um sistema urbano articulado, equilibrado e convergente. A ‘Metrópole de duas Margens’ enquanto ilusão dos anos 80/90 deu origem, em 2023, à transformação da Península de Setúbal numa NUT II para aceder a fundos enquanto região não convergente e uma das mais pobres do país. Quando se dá uma polarização-limite, num primeiro momento perde-se a coesão territorial e, num segundo momento, perde-se a competitividade do próprio centro.

É em todo este caldo que se pode entender a pobreza do país e de Lisboa. A entrada na pobreza e a sua manutenção (resumo meu do trabalho da FFMS) relaciona três D individuais (Desemprego; Doença/Deficiência; Divórcio) com três D estruturais (Desigualdades/Discriminação; Desregulação do mercado de trabalho; Desqualificação) e com três D políticos (Deficiente apoio aos eventos disruptivos; Desprezo pela conciliação trabalho-família/Desigualdade de género; Deslegitimação da escola como produtora de mudança).

Os pobres não se revoltam: sobrevivem. A revolta surge numa segunda ou terceira geração quando há uma consciência da reprodução da pobreza ou mesmo da sua intensificação. E, claro, quando surgem os rastilhos e faísca que a desencadeia, mormente com as redes sociais. É a consciência da oportunidade impossível (para referir um conceito central referido por Susana Peralta num texto do Público: ‘um quarteirão pode fazer toda a diferença’) de uma ascensão social ou mesmo da manutenção de um determinado estatuto atingido pelos pais: a consciência de que não vão concretizar as ilusões dos pais que neles viram finalmente a integração na cidade de pleno direito. A discriminação começa na escola e continua no acesso ao emprego. Quando a cidade é uma ilusão, o que fazer com a cidade? Se não há direito à cidade, não há direito a ter direitos. E é isso que alguns sentem nas ‘zonas urbanas sensíveis’ (um eufemismo para Bairros de Risco ou Bairros Problemáticos). Mesmo que sejam excepções fazem populações. E esta rotulagem de excepções territoriais também faz populações!

A Polis e a Civitas: novíssimas guerras e planeamento cultural

A civitas que não possibilita uma cidadania de igualdade acaba por se refectir numa polis polarizada. E a polis (política) polarizada activa a consciência dessa civitas (cidade) dividida. Estamos assim num loop contínuo. Uma política de controlo de danos de tal polarização, gerindo entre apaziguamento e coerção, entre balas de açúcar e balas que matam, não serve ninguém: é imperioso construir JÁ uma sociedade mais aberta.

Criar um exército de policiais e de assistentes sociais numa lógica de coerção e apaziguamento típica de um humanitarismo de baixa intensidade ou um humanitarismo militarizado é, simplesmente, ineficaz. Mas não me admirava que fosse essa a solução neste país avesso à transformação.  A situação em que estamos é já de uma cidade em que o perigo (depois de localizado e deslocado) foi deslocalizado. Basta ver o mapa das ocorrências nos dias que sucederam à situação crítica, assim como as provocações cruzadas nas redes sociais. Ora, criar uma cidade de fluxos e presencial de encarcerações e provocações é simplesmente activar a distopia das novíssimas guerras: as guerras civis urbanas que existem nas cidades do Brasil, Estados Unidos, França, etc. A ‘insecuritas’ generalizada é apenas uma etapa para que os cidadãos desejem a ‘auctoritas’ (poder de comando). É isto que está na agenda e que é preciso acautelar e prevenir.

Precisamos, ao invés de activar processos de participação cidadã claros e Planos Transformacionais a partir de baixo. Quando há a consciência de que a cidade é uma ilusão temos de ‘saber perder tempo com as pessoas’ e escutá-las acima de tudo. Mas, para além disso, há que accionar uma estratégia de ‘planeamento cultural’, quer nos bairros quer nas escolas, campus universitários e demais instituições que já foram usados na Austrália, Canadá, etc. Identificar os desejos das pessoas e criar contextos efectivamente interculturais nas instituições e nas cidades. Uma política social de valências e de populações tem de ser complementada por uma política social territorial para que as cidades cumpram a sua missão histórica: sejam realmente sistemas de convivência de culturas.