O mundo é feito de mudança, por vezes em evolução, por vezes em rutura, sendo de esperar que o dia de amanhã venha a ser diferente daquilo que é hoje. Existem, porém, aspetos que resistem à erosão do tempo, moldados por sucessivas gerações, sendo a isso que chamamos, “cultura” e “valores”, ou seja, comportamentos, hábitos, formas de viver, tradições, crenças que nos definem e servem de referência ao nosso modo de vida. Os valores e a cultura são parte de nós, não sendo possível olhar para a pessoa humana, coartando-lhe estas dimensões, sem ferir a sua dignidade. A legitimidade da cultura de um povo, de um grupo, ou de uma pessoa, ou dos seus valores fundamentais, não é definida por um qualquer decreto, ou por uma qualquer lei, sendo expressão de escolhas seculares e de uma validação que perde as suas raízes no tempo. Mudar aquilo que há muito, simplesmente é, implica um novo processo de validação e adesão sujeita à prerrogativa do tempo, das escolhas de cidadãos livres, sempre, porém, num respeito, não só da realidade, como dos fundamentos básicos da natureza humana.
A minha formação pessoal e maneira de ser é muito orientada para o futuro, sendo um apaixonado pela mudança, pela procura de melhorias e de novos conhecimentos, na convicção e desejo que aquilo que nos está reservado venha a ser melhor do que aquilo que temos hoje. Não tenho particular apego pelo passado ou pela mera tradição; tal não significa, porém, que não respeite profundamente o valor intrínseco da legitimação secular. Ora, de alguma forma, com avanços e recuos, a História da Humanidade mostra-nos que um certo otimismo prudente é justificado, e que, não obstante existirem páginas negras no passado, temos sabido reforçar, ao longo dos séculos, o chamado “capital social”, em benefício de todos.
Tudo isto vem a propósito do dilema que certos valores emergentes nos colocam a todos, na procura do equilíbrio entre aquilo que é uma saudável mudança, e as capturas totalitárias que espreitam na esquina, pondo em causa os fundamentos das sociedades liberais, construídas a pulso nos últimos dois séculos.
Para mim, mudar significa iniciar, hoje, aquilo que virão a ser os pilares do futuro, as referências de sociedades que, desejavelmente, servirão melhor os que delas fizerem parte. Por isso encaro com natural simpatia todos aqueles que, hoje, procuram, nos hábitos alimentares, nos direitos fundamentais, na promoção da sustentabilidade, fazer evoluir o conhecimento, a tecnologia, os hábitos sociais, ou uma melhor aceitação do Outro nas suas especificidades.
Os agentes da mudança, porém, devem ter consciência que as suas propostas têm de ser sujeitas a um processo de validação que, desejavelmente, não pode ser artificialmente imposto, ou seja, reconhecido na sua validade sem se submeter às agruras do tempo. Sendo eu, por exemplo, um entusiasta das energias limpas, terá de ser o engenho humano a encontrar soluções menos poluentes que descontinuem as que, atualmente, são utilizadas, sem que na transição se destrua demasiado capital social existente, não sendo óbvio que todas as opções atualmente equacionadas – energia eólica, solar, hidrogénio – venham a ser, efetivamente, as energias do futuro. Só o tempo e o processo de validação feito por sociedades livres poderá identificar quais serão as fontes de energia que nos suportarão nos dias que estão para vir. O processo de validação é ainda mais exigente, por exemplo, na alimentação, ou na nossa relação com os animais. Não negando a validade que poderá existir nas propostas alimentares emergentes, e nos novos alimentos (aos quais, honestamente, resisto), não é viável acreditar que seria possível alimentar a população mundial, por absurdo, em rutura de hábitos, sem que isso provocasse uma fome generalizada e até um enorme desequilíbrio ecológico. O mesmo se passa na nossa relação com os animais, onde sempre me impressionou a forma como tanta gente aceita bem, não só o sofrimento desnecessário, como a sua utilização egoísta em ambiente doméstico. O facto de acreditar que nas sociedades do futuro a nossa ligação com os animais irá desejavelmente mudar, tal não me leva a desvalorizar a importância cultural e social da forma como nos relacionamos, atualmente, com eles. E se hoje, em certos ambientes urbanos, é relativamente consensual criticar o fenómeno das touradas, pergunto-me se nas cidades estaríamos preparados para um exercício de completa coerência, que passaria por tão pouco aceitar o egoísmo que é termos animais domésticos fechados em apartamentos, varandas ou gaiolas, a aguardar pelos caprichos e contingências de vida dos seus donos, escravizados para os agradar.
Há, por isso, certas mudanças que devem ser promovidas o mais possível em liberdade, obviamente com as tensões naturais que necessariamente terão de existir num processo de validação com alguma confrontação, a qual, ainda assim, deve ser feito em respeito pelas pessoas, pelas suas crenças e valores. É essa, aliás, a razão da existência das democracias liberais, construídas precisamente para proteger as comunidades e salvaguardar o capital social construído e que serve de referência às pessoas que nela habitam, na consciência que elas são, hoje – as democracias liberais – ainda, um referencial de civilidade onde se defende, como em mais nenhuma zona do planeta, a dignidade humana, e o respeito pela pessoa.
As democracias liberais, porém, nunca deixaram de estar em perigo, não faltando quem, permanentemente, procure subverter os seus alicerces, pondo em causa os seus pilares fundamentais.
Para cada mudança que aponta num rumo positivo, temos hoje uma tentativa de captura e subversão, agentes que procuram desenquadrá-las das regras de validação desejáveis em sociedades plurais e livres. Para estes agentes, o veganismo não deve ser apenas uma forma de procurar melhorar a alimentação, devendo ser vista como uma abordagem política que visa subverter a forma como o capitalismo construiu a produção. A igualdade de género ou a promoção de direitos fundamentais dos que tenham uma orientação sexual homossexual ou uma determinada raça, não se esgota nos limites daquilo que deveria ser a libertação do estigma, exigindo que mulheres, gays, ou minorias raciais sejam politicamente ativos numa luta eterna contra o que consideram ser a “opressão”.
Desde logo é estranho que em nome da liberdade tantos adiram com entusiasmo a narrativas onde, por exemplo, a identidade sexual ou racial, ou a forma como nos alimentamos, determina uma pertença a uma categoria “oprimida” da qual o próprio não se conseguirá libertar, individualmente, tendo de aguardar por uma rutura social que altere profundamente os fundamentos daquilo que são as nossas sociedades e o nosso modo de vida.
Nas suas simplificações, estas identidades, artificiais, que amarram a pessoa à sua condição de “oprimido”, estão a ganhar espaço de uma forma que deve preocupar os que acreditam que a liberdade e o pluralismo são a receita para um futuro melhor. A sua afirmação e difusão faz-se muito na lógica da “peer pressure” (ou pressão social de proximidade), ou seja, explora a necessidade que qualquer indivíduo tem de se sentir incluído e aceite, por oposição ao ostracismo social que resulta de comportamentos ou posições que não alinham com aquilo que se perceciona ser a cultura social dominante num determinado grupo. E se a importância da aceitação é óbvia na adolescência, ela persiste na idade adulta, refletindo-se na aprovação no emprego, na aceitação que desejamos que os nossos filhos tenham na escola, na vida em geral, na construção de um futuro seguro, e até, na própria esfera social. O adulto adere aos slogans e clichês que acredita que lhe vão facilitar a vida e a integração social, que lhe exigem menos literacias ou necessidade de argumentação. Age, também, por instinto de sobrevivência, a pensar nas consequências, algo que se acentua quando tem mais dependências – menos autonomia – e, portanto, menos liberdade. A maioria das pessoas tende a jogar o jogo da cultura dominante no seu grupo, sem sequer questionar a validade dos seus pressupostos ou as consequências das suas próprias posições, que não avaliando o que julgam ser mais vantajoso para a organização das suas vidas e dos seus.
As novas identidades, para não terem de se submeter ao processo de validação, têm vindo a condicionar o debate. Conseguiram, nos últimos anos, promover um clima de silenciamento, que funciona em “auto-censura”, por receio – até medo – do online mob, da perseguição profissional, ou do ostracismo social. Hoje, no debate, há um enorme receio do capricho e da arbitrariedade do julgamento anónimo, por violação de códigos sociais que são desenhados e desfeitos segundo os desígnios do momento, o temor de ver uma frase retirada do contexto, disseminada de forma viral, no Twitter ou no Facebook, nos corredores da escola, da universidade, do emprego, ou do círculo de amigos. O pavor face ao ostracismo é de tal forma forte que não faltam pessoas que, pura e simplesmente, se sentem “desconfortáveis” com a mera existência de um debate plural. Já não é sequer uma questão de aderirem a uma dada opinião, o simples debate é, em si, tido como “inconveniente”. Para os mais arregimentados, o que numa democracia liberal seria considerado um saudável debate é tido como “ofensivo” para o “oprimido”, com riscos reais para quem desalinhe daquilo que, a cada momento, se considera ser o padrão moral dominante. Há – não tenhamos receio de o dizer – um “pânico moral” que impede o debate ou a simples avocação de hipóteses que deveriam ser avaliadas, numa sociedade livre, plural, e socialmente saudável e responsável.
O bloqueio impôs uma incapacidade para ouvir coisas que escapem ao padrão simplista imposto pelas minorias ruidosas. Os ambientes “confrontacionais” tradicionais estão a desaparecer, sendo o debate empurrado para redes sociais dominadas por um anonimato alarve. A cultura de debate – que implica ouvir, respeitar os factos e a realidade, construir um argumento, informar-se, assumir a responsabilidade pelas nossas opiniões e expressões – está em crise, está a desaparecer dos ambientes convencionais, para dar lugar a uma cacofonia egocêntrica onde são cada vez menos os que sobrevivem, ou estão dispostos a participar, sem se esconder atrás de um avatar. Com a agravante que as formas emergentes de debate, empobrecidas pela ausência de empatia, de caracteres para desenvolver um argumento, favorecem a polarização e as frases simples. A linguagem usada está cada vez mais depauperada, reduzindo o espaço para o uso do humor ou expressões mais construídas, necessariamente ambivalentes, ricas em subjetividade, e que convidam à interpretação. Poucos são os que estão disponíveis a arriscar, optando cada vez mais por linguagens defensivas.
Romper com este ambiente iliberal é urgente, se queremos que o futuro não nos seja imposto, a nós mas, sobretudo, aos nossos filhos, sendo antes construído em liberdade, com pluralismo e respeito por todos.