Marine Le Pen e Ivanka Trump são as duas filhas do pai. Na verdade, são extensões desses pais de quem permanecem indiferenciadas: são apenas uma forma mais suave e loura para o mesmo conteúdo.
França terá de lidar com Le Pen já no próximo domingo – para ser clara e inequívoca, espero, para bem da França e da Europa, a vitória de Macron, por muito que as suas ambições extravasem a suas competências, tem a virtude cardeal: é um democrata. Os Estados Unidos mais cedo ou mais tarde terão de lidar com Trump pai ou filha – neste momento o fundo Save America conta com 124 milhões angariados para o Partido Republicano, mas apenas 14 milhões investidos em acções/candidatos do partido, portanto, o que planeia Trump fazer com estes milhões?
Vivemos nestes tempos de ventriloquismo filial: uma voz mais doce e um discurso auto-censurado escorregam melhor no ouvido. Mas são o que são. Mais que Marine e Ivanka, são Le Pen e Trump. E mais que Le Pen é a extrema direita. E mais que Trump é a autocracia a rebocar a direita nacionalista. A questão do sucesso do discurso, no entanto, é outra e permanece intacta desde a geração anterior, a dos pais. E aponta o nosso erro, as nossas omissões.
A cada dia, Le Pen encurta a distância de Macron. Nas últimas eleições conseguiu metade dos votos deste. Nestas, e após uma metódica campanha de proximidade fora dos grandes centros urbanos, com as arestas do discurso bem limadas, e apesar das circunstâncias políticas super-evidentes que a invasão russa da Ucrânia expôs, está a mais ou menos cinco pontos percentuais nas intenções de voto do candidato incumbente, Macron. Isto, se acreditarmos nas sondagens e se elas próprias não interferirem na decisão na hora do voto.
Como é possível a progressão dos nacionalismos e da extrema direita? Sem falar no que já todos sabemos: a cleptocracia e a subsidiação das direitas nacionalistas, a manipulação por força do algoritmo, a fragmentação do tecido social pelos wokismos polarizadores. Para além disto, seja em França, nos Estados Unidos ou em Portugal, há algo muito mais simples: são muitas as pessoas que não se vêem representadas nem aos seus interesses. Sentem-se invisíveis. Os políticos não lhes tocam fora das campanhas. Os jornais não falam delas se não for estatisticamente, nem se lhes dirigem nem, muitas vezes, contam com a força que representam. Não têm questões fraturantes, têm questões de subsistência. Foram abandonadas pela esquerda quando esta se tornou identitária. E pelo centro quando este se partidarizou, infiltrou e chamou a si e aos seus a coisa pública. Como foram abandonados pela social democracia quando esta deixou de ser inspiracional para ser acomodatícia. As pessoas, quaisquer pessoas, precisam de ser reconhecidas, as suas necessidades precisam de ser validadas. Le Pen segue Maurras e a ideia por ele cunhada de pays réel, o país real, orgânico, trabalhador, familiar, tradicional por oposição ao pays légal, país legal, laico, urbano, artificial, com as devidas actualizações: reconhece, ouve, valida, dirige-se-lhes. Os invisíveis, tornam-se, aos seus próprios olhos, visíveis. Tal como Trump pai fez com extraordinários resultados. É um discurso populista, basista, polarizado, onde ecoam as angústias da classe trabalhadora e mal remunerada e, cada vez mais, da classe média que empobrece e se estreita ano após ano e vê a inversão do ciclo das expectativas: os filhos não terão uma vida melhor do que a dos pais. São os mais ameaçados economicamente que mais respondem aos apelos da direita nacionalista e da extrema direita.
Marine Le Pen aprendeu muito com Donald Trump. Nos seus discursos replica os dele, apela aos eleitores brancos da classe trabalhadora e da classe média mais vulnerável com método: eles são os trabalhadores esforçados em perda contínua de poder de compra; vítimas da globalização e das políticas da União Europeia que não os defende; são os que não podem confiar nos políticos corruptos nem em quem esteja acima na escada social; são os que partilham de uma identidade moral, cumprem a lei, salvaguardam a família e protegem as mulheres e mesmo a comunidade lgbtqi+ e os imigrantes legais. E depois de tudo isto, eles são as vítimas sociais a quem será feita a devida reparação. E será ela, Le Pen, quem a providenciará.
A famosa formulação de Lipset do «autoritarismo da classe trabalhadora» e da classe média empobrecida, está viva e de boa saúde. Onde se lia a classe definida pelos rendimentos/profissão, leia-se a classe definida pela escolaridade e verificar-se-á, quanto mais vulnerável, mais permeável à construção e à amplificação do bode expiatório, qualquer que ele seja: o capitalismo ou os judeus, os emigrantes ou as elites. Onde a escolaridade é menor o racismo, a intolerância, o nacionalismo, são maiores.
Le Pen pode usar a cartilha de Trump quando discursa, mas é na senda efectiva de Órban que vai. Pela outra filha do pai temos de esperar ainda.
A autora escreve segundo a antiga ortografia