Foi um dos pequenos factos mais significativos dos últimos tempos, e teve a ver com uma cantiga. No festival da Eurovisão, a concorrente de Israel obteve uma das mais baixas pontuações dos júris oficiais, mas a segunda mais alta votação do público. Em muitos países, venceu mesmo a eleição popular. Foi o caso da Bélgica, apesar de a televisão pública flamenga ter boicotado a sua transmissão. Foi também o caso de Portugal, onde o júri não lhe atribuiu um único ponto, e o público lhe deu a pontuação máxima. É improvável que se tenha tratado só de uma questão de gosto. O que separou o público que votou pelo telefone e os júris nomeados pelos organizadores não terá sido o apreço pela canção, mas a campanha contra Israel: não sei se os júris cederam, mas de certeza que o público quis resistir. Como em tantas votações dos últimos anos, vimos mais uma vez o abismo que actualmente distancia os protagonistas da vida pública, daqueles a quem poderemos chamar as “pessoas comuns”.
É possível ter diversas opiniões sobre a guerra entre Israel e o Irão em Gaza. Os próprios israelitas as têm. Mas como muita gente já percebeu, não é isso que está em causa na campanha contra Israel: não é a estratégia militar israelita, nem as baixas civis árabes, mas a existência de Israel. Ao exigir um cessar-fogo imediato e sem condições (nem sequer a libertação dos reféns israelitas), a campanha exige uma vitória do Irão e do seu braço em Gaza, a seita terrorista Hamas. Ao descrever Israel como um “Estado colonial” e “genocida”, a campanha reduz Israel a uma monstruosidade sem direito a existir. É esse, aliás, o sentido da reivindicação de uma “Palestina do rio até ao mar”, isto é, de uma terra sem a única democracia do Médio Oriente e sem os seus cerca de sete milhões de cidadãos judeus. É isso que os manifestantes, uns conscientemente e outros talvez inconscientemente, pedem nas universidades e na arena da Eurovisão.
O wokismo, de que a campanha contra Israel se tornou um dos rituais obrigatórios, não é só a extrema-esquerda. Mas é fundamentalmente a extrema-esquerda. São os activistas da extrema-esquerda que definem os temas e os métodos da “luta”. Nada, por isso, é aqui novo: a campanha contra Israel recicla apenas o anti-semitismo soviético, que encarava todos os judeus como “sionistas” e Israel como um agente do “imperialismo americano”. Houve quem estranhasse ver os activistas do clima e das “reparações coloniais” passarem a activistas contra Israel, a começar pela inevitável Greta. Mas para estes activistas, os assuntos são irrelevantes em si, e por isso substituíveis uns pelos outros. O objectivo não é dar um Estado aos árabes da Palestina, nem diminuir o consumo de petróleo ou devolver peças dos museus: é atacar o Ocidente “capitalista” e “liberal”, dê por onde der.
O wokismo propõe-se, nos salões burgueses, simplesmente como uma nova “boa educação”, ou até como uma espécie de terapia para os ricos e instruídos purgarem o pecado dos seus “privilégios”. Mas esta receita de “boa consciência” vai servindo sobretudo para viabilizar a manipulação esquerdista de instituições e empresas. Quem tem estatuto no espaço público não parece capaz de lhe resistir. O activismo esquerdista conseguiu, através do movimento woke, impor os seus critérios às autoridades e às celebridades do Ocidente. Essa é uma das lições da Eurovisão. A outra lição é esta: fora desses círculos de cobardia e oportunismo, a história é diferente. A gente anónima, usando os mecanismos democráticos, provou que nem todos se deixam intimidar pelo “bullying” da extrema-esquerda. Portanto, viva a democracia e bem-haja o povo.