1 Nos últimos tempos, espalhou-se a ideia de que um hiato crescente estaria a emergir entre jovens mulheres e jovens homens no que toca à ideologia política. A teoria foi difundida para as massas por John Burn-Murdoch, jornalista do Financial Times, no final de Janeiro deste ano e, desde então, espalhou-se por todos os órgãos de comunicação social, incluindo a Economist, e em diversos órgãos de comunicação social portugueses, desde o Público ao Expresso e à Visão, passando pelas colunas de opinião. A ideia difundida é a seguinte: nas gerações mais jovens, os homens estão a tornar-se mais conservadores, mais reaccionários, mais machistas, em grande medida como resultado de uma suposta radicalização nas redes sociais (apelidada de manosphere – a esfera online dos homens). Para além disso, este efeito estará a acontecer como backlash secular e geracional em relação aos avanços da igualdade de direitos e do feminismo nas últimas décadas. Note-se que a história é sobre a existência de uma mudança em relação ao que era comum e sobre a concentração dessa mudança maligna nas gerações mais jovens, sempre alvo de projecção psicanalítica das nossas ansiedades colectivas.

2 No entanto, será esta história verdadeira? É necessário cuidado quando encontramos histórias sedutoras nas quais queremos acreditar. Frequentemente, os dados utilizados para gerar a argumentação são apenas uma pequena parcela de um universo mais vasto de dados que contam histórias muito menos simples e unívocas. Os dados provenientes de diferentes fontes e inquéritos apresentam bastante variação. Neste caso, apesar de apreciar bastante o trabalho do jornalista em causa, o artigo foi claramente exagerado. Vários cientistas sociais profissionais vieram logo demonstrar como nos Estados Unidos –um dos países analisados pelo jornalista, juntamente com o Reino Unido, a Alemanha e a Coreia do Sul — o gender gap entre liberais e conservadores se encontra inalterado face às gerações anteriores. A diferença entre opiniões em assuntos concretos também revela que as mulheres são, em geral, mais progressistas em muitos assuntos, mas, mais uma vez essa diferença, é igual entre grupos geracionais. No sentido de voto, nos EUA, não há grandes diferenças, talvez por haver apenas dois partidos.

3 Há um facto incontestável: as mulheres tendem a votar menos à direita do que os homens.

No entanto, isto não é novo: o gender gap ideológico entre homens e mulheres não parece estar a aumentar entre os mais jovens. Isto é, parece ser semelhante ao gender gap que existe há muito tempo entre homens e mulheres de todas as idades e que se verifica em muitos contextos e épocas. Mais uma vez, o alarmismo de que as redes sociais estariam a criar machistas em grande escala parece-me exagerado e para já não se reflecte nos dados empíricos.

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É preciso não confundir o nosso recanto da Internet com todos os recantos da Internet e muito menos com todos os recantos do mundo. E é preciso não confundir um processo de doutrinação maligna de almas inocentes (neste caso, feito por Youtubers misóginos às gerações mais jovens) com as predisposições das pessoas que já procuram determinados conteúdos, incluindo jovens. Sim, os jovens são pessoas como as outras e também têm predisposições, crenças, diversidade de opiniões e, acima de tudo, agência e autonomia individual para consumir esta ou aquela fonte de informação. A ideia de uma doutrinação que acontece de forma involuntária e quase impercetível é um medo popular mas que quase não ocorre. Porquê? Porque, na verdade, é extremamente difícil doutrinar alguém contra a sua vontade, contras as suas predisposições e crenças, especialmente num ambiente de informação ultracompetitivo. O que é um ambiente de informação competitivo? É o simples facto de que todos nós termos acesso diário a múltiplas fontes de informação, vindas de muitos quadrantes ideológicos, que competem entre si na produção e difusão de ideias. Se cada um de nós apenas tivesse acesso a uma única fonte de informação, de um único quadrante ideológico, seria porventura mais fácil a tarefa de endoutrinar alguém. Mas o mundo moderno está longe de ser assim. Mesmo que tenhamos órgãos de informação e redes sociais mais enviesadas para um lado ou para o outro, é quase impossível não contactar com ideias e visões de quadrantes opostos ou diferentes dos nossos. Até porque, muitas vezes, as guerras de informação fazem-se em referencial mútuo – utilizando discurso e ideias provenientes do outro lado.

4 O facto mais interessante e menos falado é o porquê do gender gap que existe em todas as gerações. Porque é que as mulheres são, em geral, mais de esquerda, mais pró-redistribuição, do que os homens? Para além de eventuais diferenças sociodemográficas entre homens e mulheres (como de educação, idade e profissão) que estão, essas sim, correlacionadas com diferenças nas preferências políticas, até hoje não me parece haver uma resposta séria a esta pergunta. A resposta mais séria – no sentido de mais “profunda” na explicação – parece mesmo ser a questão do cuidado, isto é, do facto das mulheres terem muito mais contactos com o trabalho de cuidado das crianças e dos mais idosos e, como tal, exigirem ao Estado mais intervenção social nessas áreas, o que as levaria a ser “mais de esquerda”. Mas, infelizmente, vejo que na academia as explicações mais frequentes são explicações sobre a moralidade intrínseca dos sexos: as mulheres são moralmente superiores aos homens, logo têm crenças, na opinião dessas pessoas, moralmente superiores. Até já vi académicos e académicas sérias a argumentarem que as mulheres são mais favoráveis à transição climática, sem qualquer explicação para isso para além de “são pessoas melhores”. Como mulher racional e liberal no sentido mais lato – de acreditar na complexidade humana e na autonomia individual – recuso-me a aceitar explicações que atribuem moralidade colectiva a grandes grupos demográficos. Isso é evidentemente uma extraordinária estupidez.

5 E as mulheres votam na direita radical? Realçando que não parecem existir diferenças entre gerações, é um facto que as mulheres têm menos tendência a votar em partidos de direita radical do que os homens. Em Portugal, também é assim. As mulheres têm menos tendência para votar no Chega do que os homens (mas também menos tendência para votar na CDU e na IL). As razões sobre o gender gap no eleitorado da direita radical não são fáceis de apontar. Talvez seja um reflexo daquela tendência mais geral entre homens e mulheres na sua identificação entre esquerda e direita. No entanto, há uma série de dados interessantes que permitem apontar algumas pistas. As mulheres que votam nos partidos de direita radical tendem a ser culturalmente progressistas (isto é, a favor do casamento homossexual, aborto, de uma moral secular, etc) e a ter ideias económicas tão redistributivas quanto os homens (a direita radical é conhecida por ter um eleitorado mais pro-redistribuição que a restante direita). Igualmente, as mulheres têm opiniões relativamente semelhantes aos homens no que toca à imigração ou à integração de minorias. Também não parece ser por não terem empregos manuais operários, como no mito entretanto criado sobre os eleitores “esquecidos” da direita radical, porque já foi demonstrado que as mulheres que mais votam na direita radical são mulheres dos serviços não diferenciados.

Uma tese particularmente interessante é a ideia de que as mulheres são mais avessas ao risco no plano político e eleitoral do que os homens. Isto é, as mulheres são, em geral, menos dadas a votar em partidos novos ou pequenos e também são menos dadas a ideologias extremistas. Um corolário interessante é que, com a institucionalização da direita radical, incluindo o seu sucesso eleitoral e moderação ideológica (como Marine Le Pen fez ao longo das últimas duas décadas em França), isso parece indicar que esse gender gap particular da direita radical tenderá a fechar-se. De facto, só entre 2022 e 2024, em Portugal, podemos ver essa tendência: em 2022, apenas 36% do eleitorado do Chega era feminino. Dois anos depois, em 2024, as mulheres já são 42% dos votantes no Chega. Esta tendência parece encaixar com outro fenómeno muito interessante: a crescente inclusão de mulheres nos grupos parlamentares e lideranças de partidos de direita radical. Há evidência que, percebendo da existência desse gender gap, para atrair o eleitorado feminino e também para dar uma imagem mais moderada (há a ideia de que as mulheres são mais dóceis na política), os partidos de direita radical aumentam estrategicamente a proporção de mulheres nos seus grupos parlamentares e de mulheres nas lideranças.

6 No entanto, não posso terminar esta crónica sem um aviso que raramente vejo feito. Muitas vezes, no discurso público superficial, que se gera a partir de artigos muitas vezes também superficiais, criam-se imagens mentais completamente deturpadas e monolíticas da realidade. Depois das eleições legislativas deste ano, todos repetiam a ideia de que “quem vota no Chega são os jovens” ou que “as mulheres não votam no Chega”. O problema destas frases é que, por serem tão simplificadoras, confundem pequenas tendências de diferenciais probabilísticos entre grupos, com a composição geral do eleitorado de determinados partidos. Isto é, até pode ser verdade que os jovens tenham mais probabilidade de votar no Chega (por exemplo, digamos 20%) do que as pessoas com mais de 35 anos (por exemplo 10%), mas isso não significa que não haja muito mais gente no eleitorado do Chega com mais de 35 anos, simplesmente porque há muito mais gente a votar com mais de 35 anos. Concretamente, no que toca ao eleitorado do Chega, nas últimas eleições, houve cerca de 374 mil “jovens” com menos de 35 anos a votar no Chega, mas mais de 795 mil pessoas com mais de 35 anos (incluindo mais de 100 mil idosos). Sim, é uma estrutura mais “jovem” do que a pirâmide populacional portuguesa, mas a maioria do eleitorado do Chega não é jovem. Da mesma forma, apesar de ter claramente um eleitorado mais masculino, houve cerca de 491 mil mulheres a votar no Chega (versus cerca de 678 mil homens), o que está muito, muito longe de ser um eleitorado sem mulheres. Nenhum partido não pode ignorar uma fatia tão grande do seu eleitorado. E nós também não devíamos ignorar com frases feitas como “só os homens é que votam no Chega”. A realidade é sempre mais complexa do que os modelos que criamos.