Clara Não, colunista no Expresso, escreveu a semana passada um artigo que, noutras circunstâncias, me deixaria embasbacada, mas, neste momento, sinto apenas uma tristeza e um desgosto existencial por termos chegado ao lugar, não onde nos esperam, mas onde não há esperança. Se há cada vez mais ativistas pelos direitos de toda a gente, dir-se-ia que estamos cada dia mais próximos de atingir a máxima utópica do amor ao próximo, mas ao olhar de perto, a luta é sangrenta e mais parece que decorre uma caça ao prémio pela cabeça do inimigo.

O artigo de Clara Não intitula-se “Passamos mais tempo a estudar o Monstro do Cabo das Tormentas do que a falar de escritoras mulheres”. Assim de repente, parece que Clara Não não gosta do episódio do Adamastor, mas a autora vai mais além e acrescenta: “Aliás, alunos e alunas têm-se questionado sobre o ensino d’Os Lusíadas como um louvor à pátria descabido, já que glorifica o colonialismo.”

Ir por aqui é muito perigoso. Se começamos a censurar Camões pela sua falta de “modernismo”, sinceramente, não sei onde vamos parar. É quase a mesma coisa que deixarmos de estudar o período anterior à Revolução Industrial só porque os “atrasadinhos” ainda não tinham inventado a máquina a vapor. Ou riscar a Revolução Francesa dos manuais de História, porque os malandros usavam a guilhotina. Camões nasceu há 500 anos, alguém reparou, não?! De onde é que vem este autismo social de querermos castigar homens e mulheres de outros tempos? A cultura de cancelamento está a tornar-se completamente intemporal, nunca esperei viver para ver isto. Queremos cancelar mortos!

Outra questão perigosa é começar a confundir género com génio. Fica muito mal não conseguir admirar escritores homens só porque são homens. Não estou a distorcer o que li, estou a fazer uma interpretação dos factos e do que se avizinha. É curioso, porque fui ler uma entrevista de Clara Não em que a mesma diz, e cito: “Não me importa o genital da pessoa, nem o género com que se identifica para me relacionar”. Aparentemente, não é bem verdade, porque, se assim fosse, a autora não se importava com o genital de Camões (que, aliás, nenhum de nós pode atestar ter visto). Mas a autora importa-se, e muito, com os genitais dos escritores e das escritoras.

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Assumo-me culpada (talvez até digna de pena perpétua), se hoje em dia o Crime e  Castigo (pequena referência a outro grande homem) se mede por admirar homens. Desde a adolescência que sou uma apaixonada por Tolstói, com todos os defeitos que podia ter. Se Clara Não ler a obra Anna Karénina (e se já leu, as minhas desculpas, senão fica a sugestão) conseguiria ver que ninguém representou tão bem a fragilidade do homem, como se vê na personagem de Lévin, e a força carismática da mulher, como retratou na própria Anna Karénina.

Clara Não continua e vai mais além: “Conhecemos personagens femininas que se apaixonam pelo irmão, que se atiram ao mar, que morrem de desgosto de amor, que são meros destinatários de cartas. São estes os exemplos que queremos para as nossas filhas? Estas perspectivas de amor e descrições de feminilidade contadas apenas pelo olhar de homens?”.

Várias questões se me impõem aqui. Que eu saiba não foi só Maria Eduarda que se apaixonou pelo irmão, a paixão era recíproca. Que eu saiba não foi só Mariana que se atirou ao mar para se agarrar aos braços mortos de Simão, pois também Simão morreu de amores por Teresa. Que eu saiba Julieta não foi mais mártir que Romeu, nem Cleópatra mais mártir que António. Que eu saiba foi Pedro da Maia, que do alto de toda a sua fragilidade masculina, do alto de toda a sua vulnerabilidade, tirou a vida por desgosto pela bela Maria Monforte, que fugiu com um italiano.

Que limitado é pensar que a literatura dá maus exemplos às nossas filhas. Que limitado é pensar que só morrem de amor personagens femininas. Que limitado é pensar que não se pode morrer de amor. Hoje há um boicote ao amor, ainda mais ao amor entre o homem e a mulher. Sim, é verdade. E quem o diz sou eu. E quem sou eu? Sou uma pessoa que defende igualmente todo o tipo de amor entre pessoas do meu sexo.

E o que quer dizer Clara Não quando fala em “descrições de feminilidade”? São o amor, o desgosto por amor e o suicídio características da feminilidade? Pensei que para estes autores sem sexo nem género nada era característico da feminilidade nem da masculinidade. Em que ficamos? Não podem apregoar uma coisa e o seu contrário. Se nada é feminino nem masculino, porque é que a morte por amor é mais feminina do que masculina?

É mesmo verdade que os homens (esses vilões!) representam a mulher como uma frágil imbecil que se mata por amor? Não, não, é verdade. A verdade, que cada vez mais vem ao de cima, é a de que esta síndrome de querer ser muito moderno já cheira a velho.

A única coisa que se aproveita é que a autora defende que se integrem nos programas curriculares da disciplina de Português mais autoras portuguesas. Nada contra, mesmo nada. Mas que a maior arma não seja espezinhar Camões (esse machista colonial!, estou a ser irónica, obviamente). Se é este o modus operandi das “feministas”, não são melhores do que os machistas. Está na hora de repensar se a maioria do feminismo não se tornou em femismo.