1 Há mil cerimónias assim, o mesmo modelo, o mesmo tom de voz emocionado, discursos, um palco onde alguém elogia outro alguém. Lembro-me porém de esta como se fosse hoje, como se ainda estivesse a decorrer. Lembro-me porque me é impossível esquecer.
Dessa vez também foi uma homenagem, um homenageado, emoção, abraços comovidos – mas não só isso. Foi qualquer coisa de muito próprio, deixou assinatura. Não o digo por não me ser indiferente o protagonista mas porque foi a pessoa e a sua história de vida – a de José Manuel Galvão Telles, o homenageado – que teceram a envolvência daquela sessão.
Já o escrevi, recordo-o hoje: amigos, familiares, homens de leis, colegas, políticos, artistas, intelectuais, estava lá um mundo. Muita gente, toda a que ali estava, se revia de uma maneira ou de outra, naquele homem e naquela vida e por isso acorreu à chamada: para lhe dizer isso mesmo. Portugal não costuma praticar homenagens olhando o homenageado nos olhos. Entre nós os vivos só são formidáveis quando morrem. Não é hábito saudar-se elogiosamente quem está, usando de palavras de louvor e admiração em directo. Uns disseram-lhe essas palavras no recato de um abraço; outros em cumprimento mais demorado, outros no vozear comovido que planava na sala. E outros, mais solenemente mas com ainda mais sentimento e convicção se possível, diante de um microfone. Foi o caso de António Pinto Leite ou de António Serra Lopes partilhando com a plateia um “hino” que se propunha celebrar o cidadão e o advogado José Manuel Galvão Telles na sua própria presença: acontece só as vezes, naquela tarde de 9 de Dezembro de 2014 – sorte de todos nós – aconteceu.
2 José Manuel Galvão Telles acaba de nos deixar. Mas em pelo menos cinquenta anos, nunca o perdi de vista, nem de coração. Nem á “marca de água” que foi deixando, longa vida fora. Começou cedo no empenho e no serviço a diversas causas – política, igreja, advocacia, cultura, sociedade civil, amigos. Era um cidadão “à part entiére”.
Das organizações juvenis católicas à oposição ao antigo regime; da barra dos tribunais aos grandes casos da advocacia; da diplomacia que exerceu brevemente como embaixador de Portugal junto da ONU em 1975, ao exercício da cidadania, intervindo, escrevendo, participando. Sem sombra de desfalecimentos – era incansável; sem sombra de desistência – nunca o vi desistir de nada; sem medo – nunca se cruzou com ele. Do escritório que fundou com João Morais Leitão – um dos melhores escritórios de advogados do país – e onde sem regateio de horas exercia a sua adorada advocacia indo com frequência à barra dos tribunais ao Conselho de Estado que integrou a convite de Jorge Sampaio, houve sempre um elo muito particular a unir estas tarefas e moradas: ele mesmo. É essa “diferença” que me faz hoje revisitar parte da prosa que em tempos escrevi. Revisitar o modo persistente, generoso, fogoso, com que incansavelmente e sempre sem medo repito, José Manuel Galvão Telles serviu as “suas” causas. Através das ideias, de pessoas, de “casos” jurídicos, de empenhamento cívico, de combate político. Discordei de muito – e dele, tantas vezes – mas que importância teve isso afinal, se o via inteiro na dedicação tenaz ao que acreditava? Se no caminho nunca “atropelou” ninguém – não lhe ocorreria –, se sabia ouvir adversários e até inimigos? Não que não discordasse deles – discordava com veemência e com som, até ao osso; não que deixasse de os triturar com a argumentação do jurista ou a farpa do político – mas ouvia-os, até por vezes vindo a fazer caso do que ouvia.
A idade temperou-lhe o fogo da veemência, matizaram-se ideias e sentimentos e depois chegou a “sagesse”: dote raro e maravilhoso. José Manuel tinha-se transformado num “sage” e não acho melhor palavra para dizer aquilo que a vida – e o que ele com ela fez – fizeram dele.
3 Como não lembrar hoje as nossas discussões que nos alvores de Abril de 74 e depois nos meses do PREC, subiam com facilidade o diapasão da animação até ao da exaltação, o Ze Manel radical e convicto, eu, anti-revolucionária horrorizada? Ou recordar os célebres – celebérrimos – almoços na “cantina” do Flórida, na Rua Duque de Palmela, onde então também morava o Expresso. Numa mesa onde pontificava o Vicente Jorge Silva estávamos alguns de nós, jornalistas; em frente, a imensa mesa dos esquerdistas, sempre reservada para eles. O Zé Manel, Jorge Sampaio, Nuno Brederode, Nunes de Almeida, Francisco Soares, João Cravinho, Nuno Portas – lembro-me de Paulo Portas muito jovem adolescente entrar por vezes por ali dentro, para ir ter com seu pai -entre alguns outros.
Na minha mesa onde eu era “a” reacionária – nunca me deram direito a outra coisa – refazia-se o mundo a partir de Abril. Em frente, na deles, fazia-se a revolução a partir da própria revolução. Ás vezes hesitava se os havia de admirar ou se não era melhor temê-los. Entre a condescendência e uma quase sempre acesa discordância, ironizavam com a nossa mesa, suspeitando da democracia “burguesa”de alguns daqueles comensais.
Não tenho hoje a menor dúvida de que o ter vivido, testemunhado ao vivo e em directo o que testemunhei, ter conhecido e discutido e pensado com algumas pessoas as diversas etapas que Portugal viveu nestes ultimas cinquenta anos, faz indiscutivelmente parte do meu melhor património. Em certo sentido devo também isso ao Zé Manel: daquela grande mesa foi ele que ficou o meu amigo – e amigo da nossa casa – até ao fim. Nada nunca se interpôs, nem os tempos politicamente perigosos, as discussões, exaltações, discordâncias — nada se interpỗs entre nós com carácter definitivo. O valor que ele sempre deu à amizade – e mais tarde uma tolerância mais amadurecida e revista pela sua natural bondade – nunca teriam deixado.
4 Patriarca do seu escritório, atento, presente activo, estudioso, não basta dizer que era um advogado de referência. Olhado com tanto de admiração como de respeito por todas as gerações que exerciam advocacia no belo edifício da Rua Castilho, era também muito admirado como cidadão e homem de família. Sempre me apercebi que nunca se falava de José Manuel Galvão Telles apenas como um óptimo ”advogado”: era mais que isso, foi muito mais que isso.
Há uns anos, dois desses advogados do seu escritório, Rui Patrício e Miguel Almada, acolitados pela competência profissional e o apuro estético de Nuno Galvão Telles – filho de José Manuel e também ele advogado, quem sai aos seus não degenera – resolveram pôr o seu patriarca em… livro. Fizeram bem e deram-lhe um título justo: “Uma Vida de Causas”. Juntaram papéis – alguns, muitíssimo interessantes, de resto, e que o José Manuel guardava com devoção; pediram testemunhos, contaram histórias, escolheram fotos, organizaram os sinais – jurídicos, políticos, intelectuais, culturais – de uma vida intensa. A concepção do livro é notável, indo muito além do mero somatório de “depoimentos” laudatórios, e concentrando-se antes na revisão de uma vida com as suas etapas, cantos e capítulos, com um painel de “causas” em fundo. Na capa, um surpreendente retrato de Galvão Telles, pintado por Júlio Pomar, amigo de todas as horas. Alta qualidade, portanto. Como ele gostava.
5 Não é todos os dias que se assistia à homenagem com que iniciei estas linhas. Em Portugal é raro celebrar-se a vida. Guardam-se gestos e palavras para a morte, coisa com menos arestas. Mas saindo do perímetro da homenagem e olhando para trás o que faço questão de deixar aqui é aquilo com que fiquei e nunca esqueço: a fidelidade na amizade, a sua bondade intrínseca.
O adjectivo bondade parece em desuso mas apenas porque é raro. É que mais que a política; mais que cidadania nunca maculada pela fraqueza ou a desistência; que o brilho da advocacia ou o vivo interesse pelas coisas da cultura; mais ainda que as reuniões de amigos, as viagens, a idas a Xangai, aos Açores, ao Brasil — entre outras idas; os passeios, os fins de semana, os almoços no Salvador, lembrarei o José Manuel como uma pessoa boa. Capaz da bondade quase como uma forma de interpretar a vida. Com os seus, com os outros.
Não se esquece um justo assim.